Combate à Fome em FOCO | Análises e Estudos  


Conteúdo enviado por Adriana Antunes, Mobilizadora COEP do Rio de Janeiro
x

“Não ter o que comer é a pior das violações”

Por: Luiz Felipe Stevanin

Para Elisabetta Recine, da UnB, o vazio de políticas públicas colocou o Brasil na rota da fome

Primeiro, vem a preocupação em não ter o que comer. O medo de que, em um futuro próximo, falte comida no prato. Depois, surge a necessidade de abrir mão de alguns alimentos — às vezes falta o feijão, muitas vezes a carne ou os ovos, então a refeição é reduzida. Por fim, o estágio mais grave é quando realmente não há o que comer e se revela a face da fome. Em um desses três graus da escala da insegurança alimentar estiveram mais da metade dos brasileiros nos três últimos meses de 2020, como constatou o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, elaborado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan) — ou, mais precisamente, 55,2% dos domicílios brasileiros conviveram com algum estágio da insegurança alimentar no fim de 2020.

“Esse é um dado gravíssimo: pensar que entre duas pessoas, a que está do seu lado e você mesmo, uma está em risco de não se alimentar. E dessa metade, temos 20 milhões — o que é maior do que a população de muitos países — que realmente não estão comendo o que deviam comer”, avalia Elisabetta Recine, nutricionista, professora e coordenadora do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição da Universidade de Brasília (UnB). A pesquisa — divulgada em abril de 2021 — mostrou ainda que 19,1 milhões de brasileiros passavam fome no Brasil no fim de 2020, o que corresponde ao grau severo de insegurança alimentar. “Não é porque trocam arroz integral por arroz branco. Não é porque trocam a maçã pela banana. É porque não têm nenhum dos dois. Esse é o nível da gravidade em que estamos”, ressalta a pesquisadora.

Betta Recine — como é conhecida — foi a última presidente do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional), de 2017 até a sua extinção no primeiro dia do governo Bolsonaro, pela Medida Provisória (MP) 870/2019, de 1º de janeiro de 2019. Ela relembra o papel estratégico que o órgão teve no combate à fome e na promoção de políticas públicas de soberania e segurança alimentar, ao fortalecer iniciativas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), da agricultura familiar, e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) — e o mais importante: com a garantia de participação popular e escuta da sociedade. “Aquele era um grande espaço para que todos esses Brasis pudessem chegar e falar o que estavam vivendo e como estavam implementando ações que poderiam superar os problemas”, reflete.

A extinção do Consea se soma a um conjunto de medidas — como a aprovação do Teto de Gastos, em 2016, e as Reformas Trabalhista e da Previdência — que dificultam a garantia de segurança alimentar no contexto da pandemia de covid-19. “Tivemos um conjunto de fatores que fizeram com que o Brasil entrasse na pandemia em condições muito ruins”, afirma a professora. Quando a economia sofre uma paralisação drástica por conta da pandemia, ressalta Betta, “essas pessoas ficam absolutamente sem apoio”. “O governo respondeu com muita lentidão, não somente nos aspectos sanitários, mas nos aspectos da política social que criariam uma rede de apoio para a população subsistir nesse momento”, pontua.

Para a pesquisadora da UnB, a ausência de incentivos à agricultura familiar também ajuda a colocar o Brasil na rota da fome — pois “essa agricultura é que produz a comida que vai para o nosso prato”. “O agronegócio não produz alimentos, produz mercadorias (commodities). Ao contrário do que anuncia, ele não alimenta o país. Não é um modelo produtivo que distribui riqueza. Ele concentra riqueza”, critica.

Em contrapartida, Elisabetta destaca o papel da sociedade civil em construir estratégias de enfrentamento à fome, como a articulação entre agricultores familiares e grupos urbanos e a distribuição de marmitas comunitárias e cestas básicas. Essas saídas encontradas — que ela define como “solidariedade entre iguais” — é “diferente da solidariedade das grandes empresas, que aparece nos grandes jornais e na TV, falando ‘olha como nós somos muito bons porque doamos’”. “O alimento vem acompanhado de um diálogo para que as pessoas entendam que aquilo que não é nenhuma bondade. É uma maneira de minimizar, numa situação de crise, uma violação profunda que as pessoas estão sofrendo”, pontua. E reforça ainda o papel que os movimentos populares têm em reivindicar que o Estado cumpra com a sua obrigação de promover políticas públicas que garantam direitos. “Não comer e não ter uma alimentação saudável é uma violação a um direito humano”, conclui.
.

[Leia a entrevista completa de Elisabetta Recine, que é parte da reportagem de capa da edição da Radis de junho de 2021 sobre a realidade da fome]

Que políticas foram descontinuadas e levaram a um cenário em que 19 milhões de brasileiros enfrentavam a fome no final de 2020?

As políticas de segurança alimentar e nutricional deixaram de ser prioridade, já antes do atual governo. Há um progressivo desmantelamento institucional. Isso começa com o enfraquecimento da agenda de segurança alimentar e nutricional, a partir do segundo governo da presidenta Dilma, que se aprofunda à medida que a crise política e econômica se intensifica. No governo de Michel Temer, logo que ele assume, após o Golpe Parlamentar, ele extingue o Ministério do Desenvolvimento Agrário, que fazia a interlocução com toda a produção de alimentos não vinculada ao agronegócio, por meio da agricultura familiar e todas as suas expressões. Essa é a agricultura que produz a comida que vai para o nosso prato. São políticas que têm repercussão não apenas na produção de alimentos, mas na própria estrutura da pobreza no Brasil. Quando se apoia a agricultura familiar, está se apoiando a economia local. Os dados de pobreza e insegurança alimentar são mais importantes no ambiente rural. Em termos numéricos, como temos mais pessoas morando na cidade, o volume de pessoas na pobreza ou em situação de insegurança alimentar em áreas urbanas é maior; mas em termos relativos, é muito maior na dimensão rural.

Qual foi o impacto do Teto de Gastos e dos cortes nas políticas públicas para que o Brasil retornasse ao mapa da fome?

A grande promotora do desmantelamento, não só das políticas sociais, mas de todas as ações estruturantes de governo que garantiam uma melhor condição de renda para as comunidades e grupos em situação de maior vulnerabilidade, foi a Emenda Constitucional nº 95 [de 2016], que colocou o Teto de Gastos. Já quando ela foi aprovada no Congresso Nacional, todas as projeções eram de aumento, por exemplo, da mortalidade infantil, por conta da redução no orçamento do SUS. Somado aos cortes no orçamento da assistência social e da educação, tivemos um conjunto de fatores que fizeram com que o Brasil em geral entrasse na pandemia em condições muito ruins. A maior parte da nossa população, que é pobre — porque nós somos um país pobre, com muita riqueza concentrada na mão de poucos —, tinha pouca margem de manobra para lidar com o isolamento social e a redução da atividade econômica. Junte-se a isso as duas grandes reformas que ocorreram: a Reforma da Previdência e a Trabalhista. Tivemos um contingente enorme de pessoas em condições precárias; quando a economia sofre uma paralisação drástica por conta da pandemia, essas pessoas ficam absolutamente sem apoio. Quando entramos na pandemia, não tínhamos os dados que temos hoje de insegurança alimentar. Mas se olhássemos o número de pessoas em situação de pobreza, era natural concluir que a fome estava aumentando, porque a relação entre renda e alimentação é direta. Quanto menor o orçamento familiar, maior o comprometimento da renda com a alimentação. Se a gente está ficando mais pobre, a gente está passando mais fome. Entramos na pandemia também com uma fila enorme do Bolsa Família. Enfim, tivemos um conjunto de aspectos que nos faz entrar na pandemia com pouca elasticidade para poder organizar o orçamento e aconteceu o que aconteceu.

Como foi a resposta do governo em relação ao apoio à população durante a pandemia?

O governo respondeu com muita lentidão, não somente nos aspectos sanitários, mas nos aspectos da política social que criariam uma rede de apoio social para a população subsistir nesse momento. Todas as conquistas que ocorreram foram baseadas em muito trabalho da sociedade civil dentro do Congresso Nacional. O auxílio emergencial, quando surgiu a proposta, tinha um valor muito aquém do necessário. Foi a briga dentro do Congresso de inúmeras organizações da sociedade civil que fez chegar ao valor de 600 reais. O auxílio ficou até dezembro. De janeiro até abril ficamos sem nada. Então imagine: esses dados de que mais da metade da população brasileira vive algum grau de risco de fome e 20 milhões literalmente passam fome certamente são maiores agora, porque ficamos até abril sem nada e voltamos com um valor de auxílio que se sabe ser insuficiente.

O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 apontou que 55,2% dos lares brasileiros vivenciaram algum tipo de insegurança alimentar nos três últimos meses de 2020. Isso mostra que o drama da insegurança alimentar não é apenas a fome severa, mas algum grau de dificuldade de acesso aos alimentos de qualidade e saudáveis. Que requisitos definem que um lar enfrenta uma situação de insegurança alimentar e qual é a fronteira disso para a fome?

Nós tivemos a primeira pesquisa da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), que é um instrumento de pesquisa composto por 15 perguntas, que foi primeiro elaborado numa universidade norte-americana e, em 2003 e 2004, um grupo de pesquisadores liderados pela Ana Segall fez a adaptação desse instrumento e ele começou a ser aplicado [no Brasil]. A Rede de Pesquisa [em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, a Rede Penssan] pegou esse instrumento e a Ana Segall, que inicialmente fez a adaptação, está na rede e, então, aplicaram. Antes, a gente tinha a ideia do volume da fome através de dados antropométricos, principalmente de crianças, como peso e altura. Temos uma curva ideal do que é o crescimento da criança pequena, tanto em peso quanto em altura, e dependendo do quanto aquele grupo está abaixo desse ideal, fala-se que a criança está desnutrida. Consequentemente, a gente traduzia a desnutrição da criança como um aproximador da fome. Porém, a questão de ter a repercussão no corpo acontece em um grau muito acentuado. A criança perde peso, o que a gente chama de desnutrição aguda. Quando isso se prolonga no tempo, ela também tem um atraso na sua estatura. Acontece que esse é um dado que tem uma latência. Já a escala [EBIA] tem o valor de identificar na população não apenas aquela situação em que já existe uma repercussão no corpo, por conta do baixo peso ou da baixa estatura, mas também essa situação cotidiana de ter que organizar a vida pulando refeição, diminuindo a quantidade que se come, ficando um dia sem comer, no outro se come alguma coisa.

Nesse sentido, quais seriam os diferentes graus de insegurança alimentar?

O que a gente chama de insegurança alimentar leve é quando a pessoa diz que se preocupou com a possibilidade de não ter o que comer. A moderada é quando a preocupação evoluiu para a redução do prato. A grave é aquela em que a redução levou a pessoa a não se alimentar, a ter que pular refeições e isso atingiu inclusive as crianças. Nessas três situações, nós temos mais do que metade da população brasileira. Esse é um dado gravíssimo: pensar que entre duas pessoas, a que está do seu lado e você mesmo, uma está em risco de não se alimentar. E dessa metade, temos 20 milhões — o que é maior do que a população de muitos países — que realmente não estão comendo o que deviam comer. Não é porque trocam arroz integral por arroz branco. Não é porque trocam a maçã pela banana. É porque não têm nenhum dos dois. Esse é o nível da gravidade em que estamos.

Você citou o abandono das políticas de agricultura familiar. Por que o agronegócio não garante comida na mesa dos brasileiros — ao contrário, agrava essa situação da fome?

Há um tempo atrás, um representante do setor disse num debate que o agronegócio não tem nada a ver com alimentação. Eu acho que ele fez a melhor definição. O agronegócio ter batido recordes de safras e praticamente não sofrer nenhuma consequência importante diante desse período todo que vivemos, mostra que essa afirmação é muito verdadeira. Na verdade, o agronegócio não produz alimentos, produz mercadorias (commodities). Essas commodities vão para alimentar gado, aves, suínos, e são matéria-prima para outro setor que não sofreu impacto importante durante a pandemia, que é a indústria de alimentos ultraprocessados. O que basicamente o agronegócio produz? Produz milho, soja, cana de açúcar, frutas para exportação. O agronegócio está voltado para o mercado exterior, para a produção de ração ou de matéria-prima para ultraprocessados. Ele passa pela pandemia praticamente incólume. Ao contrário do que anuncia, ele não alimenta o país. E também não deixa o país mais rico, porque todo o valor que ele produz está muito concentrado na mão de poucos. Ele não é um modelo produtivo que distribui riqueza. Ele concentra riqueza.

A Abrasco publicou recentemente o documento Agronegócio e Pandemia no Brasil: Uma sindemia que está agravando a pandemia de covid-19?, em que aponta o agravamento dos impactos da covid-19 diante das consequências sociais geradas pelo agronegócio. Como isso ocorre?

Há um conceito que se chama sindemia global, que foi publicado na revista Lancet em 2019, em que o argumento é o seguinte: hoje — e naquele momento ainda não havia pandemia — o mundo passa por três grandes epidemias, ou três grandes crises. Uma histórica, secular, que é a fome e a desnutrição. São todos os problemas alimentares ligados à insuficiência basicamente. Outra grande crise ou epidemia mais recente é a da obesidade, que está ligada a um padrão alimentar, a um modo de vida que faz com que as pessoas consumam alimentos relativamente baratos, nutricionalmente pobres, não saudáveis e que dão uma carga de energia enorme, sem diversidade nutricional. E a terceira grande crise é a climática, ligada à emissão de gases de efeito estufa. E por que chamam de sindemia? Sindemia são epidemias que compartilham determinantes, que têm efeitos coordenados que são maiores que os efeitos individuais. A base desses três grandes desafios da humanidade são os sistemas alimentares agroindustriais. Primeiro, porque fazem uso intensivo de combustíveis fósseis e insumos derivados do petróleo, gerando gases causadores do efeito estufa. São fornecedores das matérias-primas dos ultraprocessados, que são produtos que já têm evidência no mundo inteiro de que o consumo está relacionado à obesidade. E produzem também a desnutrição, porque geram pobreza, já que toda a produção é concentrada, além de gerarem produtos pobres nutricionalmente. O agronegócio ter passado incólume à pandemia está relacionado a esse conjunto de aspectos.

O que o fim do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional) diz sobre o retorno do Brasil ao mapa da fome?

A extinção do Consea tem um simbolismo muito grande que vai muito além do próprio conselho, e muito além da agenda de segurança alimentar e nutricional. A extinção do Consea simboliza uma escolha consciente ou inconsciente que nos levou a viver o que estamos vivendo hoje. O Consea fazia parte de um Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, criado pela lei aprovada em 2006 [Lei Orgânica de Segurança Alimentar, ou Lei 11.346 de 2006]. E diferente de outros conselhos de políticas públicas, como Conselho Nacional de Saúde ou de Assistência Social, ele começou a existir mesmo antes do sistema. Ele teve uma vida curta no governo do Itamar Franco. Depois foi extinto no governo de Fernando Henrique Cardoso. E volta no primeiro momento do primeiro mandato do presidente Lula, dentro da proposta do Fome Zero. Portanto, esse sistema foi discutido já no ambiente de participação social, em que os diferentes setores de governo e da sociedade civil começaram a concretizar uma proposta antiga de ter um sistema de políticas públicas que coordenasse e articulasse as diferentes ações e áreas de governo que se relacionam com a questão alimentar. Essa é uma qualidade desafiadora e muito importante.

E que frutos essa experiência gerou?

Por mais que toda essa experiência tenha tido limitações e críticas, ela tem um valor imponderável, porque proporcionou que setores de governo que nunca sentavam juntos para discutir o mesmo problema e compartilhar decisões começassem a fazer isso. Essa interação do governo com a sociedade civil dá a ele uma oportunidade de acessar a realidade, o que é algo precioso, porque permite ver as reflexões sobre os caminhos de superação dos desafios a partir da voz de quem está passando por aquilo, de quem enfrenta aquele problema e está construindo propostas para superar. O Consea tinha esse papel. E nessa discussão das diferenças — porque não é um caminho fácil — é que foram gestados, por exemplo, todo o processo de aprimoramento do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), [foram ouvidas] as vozes das comunidades tradicionais, da população negra, dos povos indígenas. Aquele era um grande espaço para que todos esses Brasis pudessem chegar e falar o que estão vivendo e como estavam implementando ações que poderiam superar os problemas vividos. É uma troca de informação e uma maneira de fazer política pública que não é nada cômoda, não é rápida no sentido de que tudo acontece de uma hora para outra, mas é de uma profundidade incomparável.

Em contrapartida, como o fim dessa experiência dificultou ainda mais a realidade que seria vivida com a pandemia?

Quando você destrói tudo isso, o que acontece? Acontece o que a gente vê hoje: um governo lento, que não reconhece o que o seu povo está vivendo; que não valoriza isso a ponto de o Censo ser adiado, porque não se prevê a importância de conhecer a realidade nem por dados, imagina por diálogo! Então, o Consea poderia — se a gente estivesse vivendo outra realidade — ter sido um espaço, durante a pandemia, para que o que está acontecendo no nível local pudesse ser acessado de uma maneira muito mais rápida e precisa pelo governo, para ele poder estruturar ações para enfrentar essas realidades. Isso não aconteceu. É importante ver que, apesar da não existência do Consea nacional, os Conseas estaduais continuam existindo e muitos deles com uma atividade muito presente ao longo desse tempo todo. E a sociedade civil continua organizada em torno de uma conferência popular por soberania e segurança alimentar e nutricional. Um aspecto importante é destacar, durante a pandemia, além das ações que está se falando muito sobre a solidariedade, o quanto a sociedade civil mostrou muita capacidade de conseguir manter, iniciar ou ampliar experiências importantes, como, por exemplo, a articulação entre agricultores familiares e grupos urbanos, a questão de marmitas comunitárias e a distribuição de cestas. Há um movimento para além da política pública que mostra a importância da sociedade civil e o quanto a política pública precisa aprender com a sociedade civil.

Qual é o papel da mobilização de movimentos populares na luta contra a fome? Como esse protagonismo popular pode vislumbrar saídas?

Essa questão da sociedade civil tem várias faces. Uma delas é essa que comentei, do quanto a sociedade civil organizada foi importantíssima para defender, dentro do Congresso Nacional, ações minimamente razoáveis durante a pandemia. Não fosse isso, a gente estaria numa situação muito pior. Há um lado de sensibilização dos congressistas, para tentar minimamente dar algumas respostas. No nível local, a sociedade civil promove uma solidariedade que tem uma característica absolutamente diferenciadora: diferente da solidariedade das grandes empresas, que aparece nos grandes jornais e na TV, falando “olha como nós somos muito bons, porque doamos”, a solidariedade da sociedade civil organizada é horizontal. É uma solidariedade entre iguais. Uma vez eu ouvi uma pessoa dizendo: “A gente não faz solidariedade com o que sobra, a gente faz solidariedade com o que tem”. O alimento — que certamente é importante, seja na forma de cesta ou refeição — vem acompanhado de um diálogo para que as pessoas entendam que aquilo que não é nenhuma bondade, aquilo é uma maneira de minimizar, numa situação de crise, uma violação profunda que as pessoas estão sofrendo. Porque não comer e não ter uma alimentação saudável é uma violação a um direito humano. Essa solidariedade entre iguais vem acompanhada de um diálogo de que essa não é uma situação que está dada, não é definitiva, existem muitos caminhos para que ela seja superada.

E qual o papel do fortalecimento da agricultura familiar e da agroecologia no enfrentamento à fome?

Há outras ações, por parte dos agricultores e dos grupos que apoiam a agricultura familiar, que também já existiam antes e que a pandemia intensificou, voltadas para mostrar a viabilidade dos mercados locais, de circuitos curtos, que vão na contramão desse modelo hegemônico, não só da grande distribuição, mas também da grande comercialização. Quanto mais concentrados são esses processos, mais frágeis e vulneráveis nós ficamos a qualquer desequilíbrio. Quanto mais capilarizados e locais são os processos, mais condições nós temos de resolver o problema. Por meio de várias organizações, como a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e outro grupo que reúne 13 organizações de pesquisa que se chama Ação coletiva — Aprendizados em tempos de pandemia, a gente fez a documentação no Brasil inteiro de experiências, sejam elas de solidariedade ou de abastecimento local, e percebemos o quanto essas estratégias locais se mostraram viáveis e fundamentais. Existe inclusive uma pesquisa que a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) fez, em meados de 2020, em municípios do mundo inteiro: cidades que tinham minimamente estruturadas relações mais próximas entre campo e cidade foram aquelas que conseguiram responder mais rapidamente ao problema gerado pela pandemia de desabastecimento e da alta de preços.

Que alternativas e caminhos podemos vislumbrar para o futuro próximo a partir desse protagonismo da sociedade civil e da luta por políticas de soberania e segurança alimentar?

O protagonismo da sociedade civil é fundamental, mas é insuficiente, no sentido de que o que a gente precisa é que as políticas públicas funcionem. Esse protagonismo da sociedade civil vem dando inclusive esse recado, de que o Estado precisa responder a essas necessidades não só durante a crise. A sociedade civil tem o papel de criar experiências e levar demandas. O que a gente está vivendo hoje é uma profunda violação de todos os direitos: ao trabalho, à saúde, à alimentação, à educação, à moradia. Então, é importante falar dessa profunda omissão por parte daqueles que deveriam estar organizando e implementando as políticas públicas. Durante as eleições municipais, várias organizações de diferentes agendas — de clima, de resíduos sólidos, de alimentação, de segurança alimentar, de agroecologia — organizaram-se para difundir agendas locais, para que tanto os candidatos à prefeitura quanto ao Legislativo municipal conseguissem visualizar o papel que eles têm e que muitas vezes não é ocupado, porque ficamos muito dependentes de políticas federais. Essas organizações elaboraram essas agendas, praticamente todas elas baseadas em experiência reais, para difundir entre candidatos e candidatas. E agora muitas delas estão fazendo esse acompanhamento daqueles que foram eleitos para que de fato a gente expanda a presença desses temas nas leis locais e nas ações públicas das prefeituras. Isso tem um papel de transformação muito importante.
.

Fonte: Radis Comunicação e Saúde – Fiocruz