Quebrada cria seus próprios aplicativos de entregas para sobreviver à crise

..

ODS 8 
Promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todas e todos

.


.
Uma indigestão que não estava no cardápio de nenhum brasileiro. Com a pandemia de Covid-19 que já fez mais de 37 mil vítimas, em nosso país, 4,9 milhões de pessoas perderam o emprego no trimestre encerrado em abril e um em cada cinco bares e restaurantes do país tiveram que fechar as portas para sempre de acordo com a Abrasel (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes).

Se está ruim para restaurantes tradicionais como Piantella (Brasília) e Itamarati (São Paulo) que, apesar de frequentados pela elite nacional, tiveram que encerrar suas atividades, como têm se virado os restaurantes de quebrada espalhados pelo Brasil?

Em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro, as irmãs Maria Zoé e Zoé Maria Thomé abriram mão da própria casa para manter o restaurante Frango das Gêmeas. O estabelecimento que servia 30 refeições diárias, entregava quentinhas e fornecia quase 20 aves por encomenda nos finais de semana, passou a ter apenas três ou quatro clientes por dia com a adoção do isolamento social. Depois de demitir a única funcionária que tinham, as irmãs Thomé ainda precisaram entregar a loja, já que não era mais possível pagar o aluguel.

“Perdemos até o local onde dormíamos. Moramos no Rio [capital] e viemos trabalhar em São Gonçalo devido ao baixo preço dos aluguéis. Mas precisamos cortar o gasto com gasolina e tinha o risco de exposição, então fomos obrigadas a alugar e mobiliar um quarto no meio disso tudo. Passamos a trabalhar de casa apenas com entregas”.

O serviço de delivery do iFood também precisou ser abandonado pelas irmãs de 49 anos, já que quem manuseava a plataforma era a ex-funcionária.

“Desligamos temporariamente até que conseguíssemos nos adaptar ao novo ambiente. Agora estamos no processo de recuperar a conta, algo muito difícil pra gente, já que isso é limitado apenas à internet e ao celular. Mas com a ajuda do meu filho, estamos trabalhando em expandir o negócio para mais plataformas digitais, para aumentar as vendas.”, afirma Zoe.
.

Entregue você mesmo

Expandir o negócio para mais plataformas digitais parece ser o caminho para a sobrevivência em meio à pandemia. Especialmente se essas plataformas ou aplicativos forem do próprio restaurante.

Localizada no extremo sul da cidade de São Paulo, a hamburgueria Pantcho’s House Burguer aderiu ao uso dos aplicativos iFood e Uber Eats ao mesmo tempo em que iniciou a elaboração de um app próprio.

O cozinheiro e proprietário da Pantcho’s, Ricardo Matos Vieira, 34, decidiu investir em um recurso de delivery e um serviço de entregas próprios do restaurante, com o intuito de diminuir o uso dos serviços de iFood e Uber Eats: “As taxas [cobradas por iFood e Uber Eats] são abusivas, cerca de 25% a 30% para vender neles, e eu não tenho como absorver essa porcentagem, o que faz com que a comida fique mais cara por lá. Essa porcentagem não é repassada para o entregador”, conta Ricardo.

Pensando em melhorar a logística do estabelecimento, foram contratados três motoboys fixos para o aplicativo da Pantcho’s, todos registrados. Para o empreendedor, a redução do uso do iFood e da Uber Eats faz com que seja possível cobrar um preço menor e oferecer condições mais dignas aos entregadores e funcionários do restaurante.”A aquisição do nosso aplicativo nos dá um controle muito maior tanto com o cuidado com os funcionários quanto com a comida e nós conseguimos ter um contato com o cliente que a Uber Eats e o iFood não permitem”, pontua.

Desenvolvimento de apps e empreendedorismo como forma de superar a pandemia nas quebradas não é uma receita só do Pantcho’s. O Olabi, espaço de apropriação de novas tecnologias e organização social, que trabalha para democratizar a produção de tecnologia, faz levantamentos que mostram a urgência de mais representatividade no universo da inovação.

“Podemos pensar nesses aplicativos autônomos até como uma forma de ‘hackeio’ das grandes plataformas”, conta Silvana Bahia 34, diretora do Olabi.

Os cuidados com os funcionários, que preocupam Ricardo, da Pantcho’s, nem sempre são pensados nas grandes plataformas citadas por Bahia. É o que diz Natalia Lackeski, 27, coordenadora do Viver de Bike, uma formação sobre negócios e mecânica de bike, voltada para pessoas interessadas na bicicleta como ferramenta de geração de renda. “Existe um cuidado de abordagem [no nosso curso] para não fantasiar o empreendedorismo, mas também existem negócios que precisam ser criados e não vai ser pelos CEOs das grandes empresas”, diz Natalia sobre o trabalho da Viver de Bike, organização que colaborou na produção da “Pesquisa do Perfil dos Entregadores Ciclistas de Aplicativo” junto à Aliança Bike.

Natália diz que os cuidados com alimentação, segurança e espaços para higiene dos entregadores são muitas vezes negligenciados, “porque mais entrega gera mais dinheiro. Não tem como falar que é um jeito inovador [de negócio] se perpetua a mesma subalternização do trabalho e favorece o aumento das desigualdades”.

A Pesquisa do Perfil dos Entregadores Ciclistas de Aplicativo, realizada com a participação do Viver de Bike, mostra que 71% dos entregadores são majoritariamente homens negros e estão na faixa etária entre 18 e 22 anos. Esses homens trabalham uma média de 13 horas e 37 minutos por semana para receber menos de um salário mínimo (R$ 936) por mês.

Eduardo Christian de Jesus Santos, 27, é morador do Capão Redondo, no extremo sul da cidade de São Paulo e faz entregas de bicicleta para a UberEats, iFood e Rappi. O ciclista passou a ter dificuldades de encontrar emprego com carteira de trabalho assinada, depois de sua transição hormonal e, hoje, prefere trabalhar de forma autônoma mesmo que não seja o cenário ideal para ele.

“Trabalho com entregas há um ano e, nesse período de pandemia, os apps diminuíram nossas taxas e aumentaram a distância das entregas então hoje faço metade das entregas que fazia antes. Não temos suporte [dos aplicativos] se sofrermos um acidente e quebrarmos algo na bicicleta, não temos lugar para descansar ou carregar celular e beber água. São alguns restaurantes que nos dão esse suporte” conta Eduardo.
.

Da quebrada pra quebrada

A necessidade de se reinventar em um momento de crise impulsionou Ana Lima, proprietária do Batata da Preta, a criar um espaço de compartilhamento de ideias e habilidades para alavancar negócios geridos por outras mulheres pretas. Na “Maratona Preta Rica”, 30 empreendedoras se reuniram online durante uma semana com o objetivo de debater sua relação com o dinheiro, possibilidades de novas fontes de renda e a quitação de dívidas financeiras e emocionais. A iniciativa surgiu a partir da experiência da empresária de 25 anos que, diante do cancelamento de eventos, repaginou seu buffet corporativo para um serviço de delivery pelo iFood, na casa onde mora com a companheira e sócia no Riachuelo, Zona Norte do Rio de Janeiro. Para isso, Ana estudou o uso do aplicativo, fez o logotipo da marca num site gratuito e investiu os R$ 600 do auxílio emergencial obtido por ser microempreendedora individual.

“Há algum tempo, passei por uma formação voltada à população LGBTQ+ que foi um divisor de águas para mim por considerar a nossa realidade. Descobri esse desejo de ser o que chamo de ‘facilitadora da riqueza’, no sentido de rever o lugar que nos é dado – de sobrevivência – e de nos tornarmos protagonistas na nossa própria história. A maratona foi a forma que encontrei de contribuir com os meus conhecimentos sobre energia, planejamento e empreendedorismo com as meninas. Surgiram propostas de trabalho, dívidas foram canceladas. Agora, quero criar um grupo focado em delivery, para quem está precisando se jogar nesse universo”, conta.

Foco em Delivery já era o mantra de Sueli Govea, 44, proprietária do Ô Legítimo Pastel no Jardim São João, quebrada da zona sul de São Paulo. Em tempos de coronavírus, ela pontua que a interação mais próxima com o cliente, via app próprio, tornou-se diferencial essencial para a continuidade do trabalho.

“Eu vejo que temos retorno melhor quando conseguimos contato mais próximo com o cliente. Nesses outros aplicativos, Uber Eats, iFood, não tem nenhum contato. Às vezes acabou o pastel de queijo, por exemplo, e com o contato com o cliente, eu já sugiro outro”.

Mais do que antes, os pedidos de comida são feitos dentro da quebrada de cada restaurante. Entendendo melhor os desejos dos moradores-clientes, são adicionados novos itens ao cardápio. No Ô Legítimo Pastel que já contava com mais de quarenta tipos de pastéis, também foram incluídas promoções de caldo no “Festival de Inverno” para suprir um desejo local.

As mudanças, no entanto, geram novos custos. Só os pacotes com 62 embalagens custam em torno de R$ 80, além dos custos com as mochilas dos entregadores e a manutenção da moto ou bicicleta. “É necessário ressaltar que ter um site e um app tem um custo, tenho até uma preocupação com uma visão ‘cria o aplicativo e tudo vai se resolver’, quando na realidade a gente sabe que não é assim, os aplicativos não vão resolver os problemas da sociedade”, diz Silvana Bahia do Olabi.

Para Ricardo, da Pantcho’s, mesmo com um valor alto, fazer o investimento no app rendeu o retorno necessário. “As mensalidades variam de R$ 199 a R$ 899, dependendo do seu faturamento no próprio aplicativo. O valor de implantação dele foi R$ 2.000. Não é um investimento pequeno pra gente, mas foi bem importante e acaba se pagando. Queremos saber os detalhes do que o cliente precisa, ter feedbacks mais próximos, conseguir nos dedicar a pedidos especiais, como recados de um casal que quer mandar um lanche pra pessoa que ama, por exemplo”.

A reportagem entrou em contato com UberEats e iFood para obter informações, como quantas pessoas se cadastraram para as entregas nos últimos três meses, porém a assessoria de imprensa informou que não publica e nem repassa os dados solicitados.
.

Como fazer pedidos

SP – Ô Legítimo pastel de feira
Telefone:(11) 98694-2148
Instagram: @opastellegitimo
Aplicativo: https://store.sistemapolis.com/opastel/index.html
Delivery: Jardim São João e adjacências


.
Ainda que cerca de 90% de todo material reciclado do país sejam coletados pelos catadores, a categoria continua atuando na informalidade e sofrendo com a invisibilidade em relação às políticas sociais. Com a disseminação do novo coronavírus, a vulnerabilidade do grupo que tira seu sustento das ruas ficou maior. O cenário levou a ONG “Pimp My Carroça” a criar uma renda mínima para esses trabalhadores.

Por meio de um financiamento coletivo, a organização, que atua há oito anos junto aos catadores de materiais recicláveis, arrecadou R$ 318.856,  que serão distribuídos entre profissionais já atendidos pelo Pimp My Carroça. No total, 2.328 pessoas apoiaram a iniciativa via vaquinha virtual. Além disso, algumas pessoas fizeram doações diretamente na conta da ONG e empresas também contribuíram, totalizando cerca de R$1,4 milhão arrecadados. A quantidade de catadores que receberá o benefício ainda não foi decidida, assim como o valor que será disponibilizado para cada um, mas a ONG estima que pelo menos 1770 trabalhadores recebam o benefício de cerca de R$ 800.

Após levantar o valor, a ONG tem feito uma varredura no banco de dados da instituição, que é criadora do aplicativo “Cataki”. O app liga catadores a pessoas e empresas que desejam contratar serviços de reciclagem. O levantamento pretende identificar os trabalhadores em situação vulnerável devido  à pandemia e auxiliá-los com a renda mínima, e cartões com o crédito estabelecido pela iniciativa já estão sendo distribuídos para os trabalhadores. Vinte e dois voluntários da ONG já efetuaram cerca de sete mil ligações telefônicas para apurar a situação dos trabalhadores neste momento.

— Descobrimos que a renda do catador que tinha que trabalhar para ganhar o dinheiro do almoço despencou. O catador estava desprovido de renda e tinha que ficar em casa. Antes do governo federal, lançamos nosso projeto de renda mínima com o intuito de levar dinheiro a essas pessoas. Colocamos uma meta de R$ 500 mil — conta Mundano, grafiteiro e fundador da ONG. — Nas ligações que fizemos, houve catadores que renunciaram ao apoio porque têm consciência de que há colegas com necessidade maior. Muitos disseram “eu estou bem, tenho minha reserva, deixe o benefício para meu colega”.
.

Cestas e KITs de higiene

Além da renda mínima, a ONG atua em outras frentes durante a pandemia com a distribuição de KITs de higiene, refeições e cestas básicas. De acordo com a Pimp my Carroça, desde o início da disseminação do novo coronavírus, já foram distribuídas mais de 16 mil refeições em São Paulo e cerca de 1.500 cestas básicas.

Um vídeo ensinando a confeccionar o “Kit água e sabão” para garantir a higiene dos catadores e evitar a disseminação do vírus viralizou nas redes e pessoas comuns passaram a produzir o material, que, basicamente, consiste em duas garrafas pet uma com água e outra com água e sabão diluído.

Ao longo dos anos, a ONG, que já contou com a ajuda de 2.400 voluntários, auxiliou mais de dois mil catadores em 50 cidades ao redor de 15 países. Além dos voluntários, 1.200 artistas já participaram de iniciativas da ONG, que também reforma os carrinhos de coleta dos catadores. Para os interessados em fazer doações, o Pimp my Carroça disponibiliza o e-mail doacoes@pimpmycarroca.com.

— O Brasil é o sétimo país mais desigual do mundo. E, ao contrário do que se pensa, não é um país que doa muito. Mas, neste momento a sociedade civil, por incapacidade do governo e de um líder que age contra o que diz a OMS, foi a primeira a dar resposta. Essas pessoas doaram o que puderam para que catadores pudessem ter um isolamento social mais digno. O projeto de auxílio emergencial do governo não chegou à maioria dos catadores — afirma Mundano.
.

Recomendações do MP

No final de março, após o início da pandemia, o Ministério Público do Trabalho, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União emitiram uma nota com recomendações para garantia da saúde dos catadores de materiais recicláveis durante a pandemia. Entre as recomendações, os órgãos estabeleciam a necessidade de pagamento de renda mínima para esses trabalhadores, assim como fornecimento de álcool em gel e kits de proteção.

— Existem ainda catadores nos lixões do país. Temos muitos catadores em situação vulnerável e há subnotificação sobre isso. Esse é um universo invisível para muitas pessoas. Na pandemia, essa categoria se tornou mais visível, já que muitos não pararam de trabalhar, arriscando-se nas ruas —  conclui Mundano.
.

Fonte: O Globo