Consultorias se especializam em recrutar negros

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ODS 10 
Reduzir a desigualdade dentro dos países e entre eles

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A pedagoga Patrícia Santos, 40, demorava 2 horas para ir de sua casa, próxima a Heliópolis, no limite sudeste da cidade de São Paulo, até seu estágio no Morumbi, na área de recursos humanos, a 17 quilômetros dali.

Filha de metalúrgico e de uma técnica em contabilidade, egressa de escola pública e trabalhando desde os 13 anos, Patrícia entrou relativamente tarde na faculdade, aos 20. Tentou por três anos passar em psicologia na Universidade de São Paulo (USP), mas não conseguiu. Se formou em uma faculdade particular que seus pais puderam pagar, e em pedagogia – “a mensalidade da psicologia era mais cara”, conta.

Incomodada com o fosso entre os colegas, ciente do benefício de estar ali e na linha de frente do recrutamento de uma grande empresa, Patrícia queria também ajudar outros negros, como ela, a conseguirem uma vaga. “Eu queria que eles usufruíssem do fato de eu ter chegado lá, mas eles simplesmente não vinham; não chagavam currículos de negros”, diz.

Em linhas resumidas, é assim que começa a história que desembocaria, no fim de 2004, na Empregueafro, consultoria de recursos humanos criada por Patrícia para dar apoio na seleção, treinamento e inclusão de negros nas empresas. IBM, PwC, Bayer e P&G são algumas que passaram a ter programas próprios de diversidade nesse meio tempo e que recorrem à ajuda de Patrícia e sua equipe para isso.

A Empregueafro foi uma das primeiras a oferecer esse tipo de serviço de recursos humanos direcionado, desbravando um mercado que saiu de inexistente no século 20 para entrar na década de 2020 fervilhando. De um lado, estão empresas e marcas cada vez mais pressionadas e preocupadas em ir além do batalhão de homens brancos em torno dos quais foram secularmente construídas. Do outro, consultorias como a Empregueafro especializadas em fazer a ponte nessa busca – grande parte delas criada por negros, integrantes das primeiras grandes gerações com diploma universitário nas periferias.

No meio, está um mundo corporativo notoriamente branco em um país onde 56% da população é preta e parda. De acordo com um levantamento de 2016 feito pelo Instituto Ethos com as 500 maiores empresas do país, 36% dos funcionários eram afro-descendentes – entre os diretores, presidentes e conselheiros, só 5%. Os negros estão nas bordas: talvez na portaria, fazendo a segurança; talvez na recepção, pegando cadastros e entregando crachás. Estão na copa servindo o café ou pelos corredores batendo nas portas dos banheiros para saber se podem entrar para limpar.

As razões para que isso aconteça, na avaliação dos fundadores dessas consultorias, são várias. Começam na defasagem educacional, passam por barreiras culturais dentro das empresas e ainda esbarram em um desalento dos próprios profissionais, que não sentem que aquele mundo é para eles e acabam se afastando. Todas elas, defendem, são ainda feridas de um racismo que nunca foi devidamente curado no país.

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“Gente boa existe”

“Hoje não dá mais para falar que não tem negros com nível superior”, diz o engenheiro Leizer Pereira, 46, fluminense da periferia de Duque de Caxias e fundador da Empodera. “As empresas às vezes alegam dificuldade de encontrar esses profissionais, como se eles não existissem, mas o programa de cotas já existe há 20 anos no país, o número de negros das universidades quadruplicou e metade dos alunos de ensino superior já é negra. Gente boa existe, o problema está no alcance.”

Fundada em 2016, a Empodera presta consultoria de recrutamento e inclusão de negros, jovens de baixa renda e minorias em grandes empresas, além de divulgar vagas, conteúdos e treinamentos gratuitos para os candidatos. Muitos deles, conta Leizer, mal sabem como é ou como agir em um processo seletivo corporativo, e fazer essa capacitação já é um dos pilares da startup. Dos currículos cadastrados no banco da Empodera, 54% são de negros, 25% de LGBT+ e 5% de refugiados e imigrantes. Ambev, Pepsico, White Martins, Boticário, Santander e Microsoft são algumas das parceiras.

Trata-se de um grupo cada vez maior de empresas que querem incluir negros em seus tradicionais programas de estágio e trainee e também nos cargos de gerência, mas nem tem ideia de por onde começar – “há as grandes consultorias que fazem isso há anos, mas elas também são de maioria branca”, diz Leizer. “São as pequenas que estão vindo para preencher essa lacuna.” O Google, por exemplo, fez no ano passado seu primeiro programa de estágio específico para negros, o Next Step, que, em parceria com a Empodera, contratou 20 universitários.

O fenômeno, contam os especialistas, começa e ainda é maior nas multinacionais, que recebem orientações de suas matrizes em regiões como Estados Unidos e Europa, onde as exigências quanto a diversidade estão mais avançadas. O primeiro trabalho feito por Leizer, por exemplo, foi ajudar a encontrar 200 candidatos recém-formados negros para um programa de trainees da Coca-Cola, em 2015. O de Patrícia, da Empregueafro, ainda em 2005, foi para a IBM, que começava a replicar no Brasil os programas que já existiam na sede, nos Estados Unidos.

“É um fenômeno que também apareceu primeiro nos departamentos de marketing, com propagandas mais inclusivas”, diz Leizer, “mas o RH está tendo que vir junto.” O raciocínio é que as marcas não vão convencer seu público e sequer conseguirão desenvolver produtos e serviços de fato mais amplos se a diversificação não acontecer dentro delas também.

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Falta de pertencimento e régua alta

O despertar das companhias primeiro para o fato de que não há negros em seus quadros e, depois, de que isso não deveria ser natural é só o começo. Daí para frente abre-se ainda uma sucessão de empecilhos.

A primeira barreira está no fato de que, muitas vezes, os próprios profissionais não consideram as vagas. “Tem advogado que não quer ir para escritório de advocacia, engenheiro civil que não quer ir para a empresa grande, porque não tem outros negros lá”, afirma Patrícia, da Empregueafro. “Eles acabam abrindo um pequeno negócio ou vão para uma empresa pequena ganhando menos. Como não há representatividade, não há pertencimento, e eles nem se candidatam.”

Caso se candidatem, são levados ao segundo obstáculo: a concorrência notoriamente desproporcional. “São meninos que vêm de escola pública, que não têm gente na família que fez universidade ou que trabalhou em empresa, eles não falam inglês, não fizeram faculdade de primeira linha”, diz Eliane Leite, 52, fundadora da consultoria recém-criada Uzoma e uma das líderes do Grupo Mulheres do Brasil, que possui projetos de capacitação de mulheres negras para cargos de liderança.

“As empresas precisam baixar a régua no processo de contratação. Se as exigências são todas aquelas, então elas não querem contratar um negro”, afirma a consultora, que também é diretora de uma escola técnica estadual em Pirituba, na zona norte de São Paulo. No Next Step, por exemplo, o processo de estágio inclusivo do Google, o inglês – requisito de todas as edições anteriores – foi deixado de lado. Os ingressantes ganham aulas do idioma e mentorias ao longo dos dois anos de programa.

Isto porque a inclusão dá lucros: um estudo publicado em 2018 pela consultoria McKinsey mostrou que as companhias com maior diversidade étnica e cultural tinham uma chance 33% maior de serem mais lucrativas que a média. A pesquisa cruzou os resultados com os quadros de funcionários de mais de 1.000 empresas em 12 países.

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Da porta para dentro

Uma vez vencida essa corrida de obstáculos, os desafios do candidato negro e de baixa renda que consegue passar para o lado de lá dos escritórios ainda são muitos. Em 2020, a falta de outros negros, as diferenças econômicas e culturais e episódios de constrangimento e racismo ainda acuam esses profissionais. Não à toa, boa parte do trabalho das consultorias continua depois das contratações, com workshops, eventos e capacitações junto à direção, aos colegas e às turmas que ajudam a contratar.

A falta de autoestima e a existência de vieses inconscientes – fenômeno pelo qual nosso cérebro reforça estereótipos e reproduz preconceitos automáticos – também são citados como barreiras para que os negros que já estão do lado de dentro tenham dificuldade em continuar e subir na empresa. “Trabalhamos com mulheres capacitadas e que estão há 17 anos em cargo de analista; por que a carreira delas estacionou?”, diz Eliane, mencionando o projeto no Mulheres do Brasil voltado para profissionais negras que já estão no mercado de trabalho.

“A gente vive um apartheid no Brasil, a questão socioeconômica ainda separa os negros pobres e os brancos ricos”, nas palavras de Patrícia, da Empregueafro. “Temos um racismo estrutural em nossa sociedade e ele se reflete nas instituições. A primeira coisa a fazer para mudar isso é reconhecer que ele existe.”
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Fonte: CNN Brasil


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A pedagoga Patrícia Santos, 40, demorava 2 horas para ir de sua casa, próxima a Heliópolis, no limite sudeste da cidade de São Paulo, até seu estágio no Morumbi, na área de recursos humanos, a 17 quilômetros dali.

Filha de metalúrgico e de uma técnica em contabilidade, egressa de escola pública e trabalhando desde os 13 anos, Patrícia entrou relativamente tarde na faculdade, aos 20. Tentou por três anos passar em psicologia na Universidade de São Paulo (USP), mas não conseguiu. Se formou em uma faculdade particular que seus pais puderam pagar, e em pedagogia – “a mensalidade da psicologia era mais cara”, conta.

Incomodada com o fosso entre os colegas, ciente do benefício de estar ali e na linha de frente do recrutamento de uma grande empresa, Patrícia queria também ajudar outros negros, como ela, a conseguirem uma vaga. “Eu queria que eles usufruíssem do fato de eu ter chegado lá, mas eles simplesmente não vinham; não chagavam currículos de negros”, diz.

Em linhas resumidas, é assim que começa a história que desembocaria, no fim de 2004, na Empregueafro, consultoria de recursos humanos criada por Patrícia para dar apoio na seleção, treinamento e inclusão de negros nas empresas. IBM, PwC, Bayer e P&G são algumas que passaram a ter programas próprios de diversidade nesse meio tempo e que recorrem à ajuda de Patrícia e sua equipe para isso.

A Empregueafro foi uma das primeiras a oferecer esse tipo de serviço de recursos humanos direcionado, desbravando um mercado que saiu de inexistente no século 20 para entrar na década de 2020 fervilhando. De um lado, estão empresas e marcas cada vez mais pressionadas e preocupadas em ir além do batalhão de homens brancos em torno dos quais foram secularmente construídas. Do outro, consultorias como a Empregueafro especializadas em fazer a ponte nessa busca – grande parte delas criada por negros, integrantes das primeiras grandes gerações com diploma universitário nas periferias.

No meio, está um mundo corporativo notoriamente branco em um país onde 56% da população é preta e parda. De acordo com um levantamento de 2016 feito pelo Instituto Ethos com as 500 maiores empresas do país, 36% dos funcionários eram afro-descendentes – entre os diretores, presidentes e conselheiros, só 5%. Os negros estão nas bordas: talvez na portaria, fazendo a segurança; talvez na recepção, pegando cadastros e entregando crachás. Estão na copa servindo o café ou pelos corredores batendo nas portas dos banheiros para saber se podem entrar para limpar.

As razões para que isso aconteça, na avaliação dos fundadores dessas consultorias, são várias. Começam na defasagem educacional, passam por barreiras culturais dentro das empresas e ainda esbarram em um desalento dos próprios profissionais, que não sentem que aquele mundo é para eles e acabam se afastando. Todas elas, defendem, são ainda feridas de um racismo que nunca foi devidamente curado no país.

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“Gente boa existe”

“Hoje não dá mais para falar que não tem negros com nível superior”, diz o engenheiro Leizer Pereira, 46, fluminense da periferia de Duque de Caxias e fundador da Empodera. “As empresas às vezes alegam dificuldade de encontrar esses profissionais, como se eles não existissem, mas o programa de cotas já existe há 20 anos no país, o número de negros das universidades quadruplicou e metade dos alunos de ensino superior já é negra. Gente boa existe, o problema está no alcance.”

Fundada em 2016, a Empodera presta consultoria de recrutamento e inclusão de negros, jovens de baixa renda e minorias em grandes empresas, além de divulgar vagas, conteúdos e treinamentos gratuitos para os candidatos. Muitos deles, conta Leizer, mal sabem como é ou como agir em um processo seletivo corporativo, e fazer essa capacitação já é um dos pilares da startup. Dos currículos cadastrados no banco da Empodera, 54% são de negros, 25% de LGBT+ e 5% de refugiados e imigrantes. Ambev, Pepsico, White Martins, Boticário, Santander e Microsoft são algumas das parceiras.

Trata-se de um grupo cada vez maior de empresas que querem incluir negros em seus tradicionais programas de estágio e trainee e também nos cargos de gerência, mas nem tem ideia de por onde começar – “há as grandes consultorias que fazem isso há anos, mas elas também são de maioria branca”, diz Leizer. “São as pequenas que estão vindo para preencher essa lacuna.” O Google, por exemplo, fez no ano passado seu primeiro programa de estágio específico para negros, o Next Step, que, em parceria com a Empodera, contratou 20 universitários.

O fenômeno, contam os especialistas, começa e ainda é maior nas multinacionais, que recebem orientações de suas matrizes em regiões como Estados Unidos e Europa, onde as exigências quanto a diversidade estão mais avançadas. O primeiro trabalho feito por Leizer, por exemplo, foi ajudar a encontrar 200 candidatos recém-formados negros para um programa de trainees da Coca-Cola, em 2015. O de Patrícia, da Empregueafro, ainda em 2005, foi para a IBM, que começava a replicar no Brasil os programas que já existiam na sede, nos Estados Unidos.

“É um fenômeno que também apareceu primeiro nos departamentos de marketing, com propagandas mais inclusivas”, diz Leizer, “mas o RH está tendo que vir junto.” O raciocínio é que as marcas não vão convencer seu público e sequer conseguirão desenvolver produtos e serviços de fato mais amplos se a diversificação não acontecer dentro delas também.

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Falta de pertencimento e régua alta

O despertar das companhias primeiro para o fato de que não há negros em seus quadros e, depois, de que isso não deveria ser natural é só o começo. Daí para frente abre-se ainda uma sucessão de empecilhos.

A primeira barreira está no fato de que, muitas vezes, os próprios profissionais não consideram as vagas. “Tem advogado que não quer ir para escritório de advocacia, engenheiro civil que não quer ir para a empresa grande, porque não tem outros negros lá”, afirma Patrícia, da Empregueafro. “Eles acabam abrindo um pequeno negócio ou vão para uma empresa pequena ganhando menos. Como não há representatividade, não há pertencimento, e eles nem se candidatam.”

Caso se candidatem, são levados ao segundo obstáculo: a concorrência notoriamente desproporcional. “São meninos que vêm de escola pública, que não têm gente na família que fez universidade ou que trabalhou em empresa, eles não falam inglês, não fizeram faculdade de primeira linha”, diz Eliane Leite, 52, fundadora da consultoria recém-criada Uzoma e uma das líderes do Grupo Mulheres do Brasil, que possui projetos de capacitação de mulheres negras para cargos de liderança.

“As empresas precisam baixar a régua no processo de contratação. Se as exigências são todas aquelas, então elas não querem contratar um negro”, afirma a consultora, que também é diretora de uma escola técnica estadual em Pirituba, na zona norte de São Paulo. No Next Step, por exemplo, o processo de estágio inclusivo do Google, o inglês – requisito de todas as edições anteriores – foi deixado de lado. Os ingressantes ganham aulas do idioma e mentorias ao longo dos dois anos de programa.

Isto porque a inclusão dá lucros: um estudo publicado em 2018 pela consultoria McKinsey mostrou que as companhias com maior diversidade étnica e cultural tinham uma chance 33% maior de serem mais lucrativas que a média. A pesquisa cruzou os resultados com os quadros de funcionários de mais de 1.000 empresas em 12 países.

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Da porta para dentro

Uma vez vencida essa corrida de obstáculos, os desafios do candidato negro e de baixa renda que consegue passar para o lado de lá dos escritórios ainda são muitos. Em 2020, a falta de outros negros, as diferenças econômicas e culturais e episódios de constrangimento e racismo ainda acuam esses profissionais. Não à toa, boa parte do trabalho das consultorias continua depois das contratações, com workshops, eventos e capacitações junto à direção, aos colegas e às turmas que ajudam a contratar.

A falta de autoestima e a existência de vieses inconscientes – fenômeno pelo qual nosso cérebro reforça estereótipos e reproduz preconceitos automáticos – também são citados como barreiras para que os negros que já estão do lado de dentro tenham dificuldade em continuar e subir na empresa. “Trabalhamos com mulheres capacitadas e que estão há 17 anos em cargo de analista; por que a carreira delas estacionou?”, diz Eliane, mencionando o projeto no Mulheres do Brasil voltado para profissionais negras que já estão no mercado de trabalho.

“A gente vive um apartheid no Brasil, a questão socioeconômica ainda separa os negros pobres e os brancos ricos”, nas palavras de Patrícia, da Empregueafro. “Temos um racismo estrutural em nossa sociedade e ele se reflete nas instituições. A primeira coisa a fazer para mudar isso é reconhecer que ele existe.”
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Fonte: CNN Brasil