Combate à Fome em FOCO | Notícias e Reportagens  

“Fome é uma sensação de morte”: a rotina de quem passou a dormir sem saber se vai comer no dia seguinte

GZH ouviu seis relatos de pessoas que fazem parte dos 19,6 milhões de brasileiros que enfrentam o problema, um contingente que dobrou de tamanho entre 2018 e 2020

Todos os dias, Antonio Augusto Costa Lima acorda com o nascer do sol. Pouco depois das 5h, abre a casa para arejar, dá água aos três cachorros e sai para caminhar. Duas quadras adiante, faz uma série de exercícios na academia pública da Praça Jardim América, no bairro Rio Branco, em Canoas.

Aos 61 anos e com 83 quilos mal distribuídos em 1m68cm de um corpo já curvado pela idade, ele tenta se manter saudável erguendo garrafas pet cheias de água presas aos equipamentos salpicados de ferrugem. Ao fim da malhação, tem início seu drama diário. Vendedor e bacharel em Direito, Antonio não tem nada para comer dentro de casa. Então ele sai para a rua.
— A fome gera uma angústia, uma ansiedade muito grande. Porque as horas começam a passar, deu aquela fomezinha, tu olha pra frente e não vê nada. Uma coisa é estar com fome e ver na mesa um pão, uma banana, uma mortadela. Se tu avista e pode botar a mão, a fome diminui. Quando tu começa a ter fome quimicamente, que o teu organismo precisa repor a energia e tu enxerga só vazio, ausência, carência, essa fome se acelera e atinge a tua mente. Daí, cara, eu acho que é meio Fórmula 1 sabe? Aquela cena da pista invadindo, vrumm, vrumm, vruummm, e tu: “Cadê a comida, cadê a comida?”. A fome é um ácido que vai saindo das tuas células, vai te invadindo e gerando uma raiva. Te leva a perder a noção de civilidade. Eu passei dois dias sem comer. Chegou uma hora que não aguentei mais e comecei a comer coisa do lixo, cara, do lixo. Sabe qual é a minha autodefinição? Eu sou um caçador urbano. Eu sou um cara que eu tô na rua, e eu caço. Já sei onde estão as coisas, procuro frutas nas árvores, nas praças. Passei um ano juntando moedinhas que achava no chão. É horrível, é horrível. Faço de tudo para estar bem alimentado.

Antonio é um dos 19,6 milhões de brasileiros que enfrentam o que os especialistas chamam de insegurança alimentar grave, um contingente que dobrou de tamanho entre 2018 e 2020, agravando-se na crise do emprego neste período de pandemia, segundo estudo referencial da Rede Penssan. Antonio é também um dos 1,29 milhão de gaúchos que vivem na linha da pobreza, com menos de R$ 178 por mês, conforme dados divulgados em outubro pelo Departamento de Economia e Estatística do governo do Estado.

Mas esta não é uma reportagem sobre números, tampouco sobre conceitos acadêmicos. Essa é a história de pessoas que dormem com o estômago roncando, sem saber se terão algo à mesa no dia seguinte.

As manhãs de segunda-feira são sagradas para a auxiliar de enfermagem Dejanira Vieira Rolim. Aos 86 anos, ela sai de casa antes das 7h, puxando um carrinho de feira. Boné enterrado na cabeça, óculos quadrado de lentes grossas, precisa de 300 passos para percorrer pouco mais de uma quadra até chegar ao destino: um armazém no bairro Santana onde revira frutas e verduras impróprias para venda.

Em caixas de papelão umedecidas de chorume, Dejanira separa batatas, laranjas, cenouras, todo alimento que escapa à decomposição orgânica da semana que passou. Não é tarefa fácil para uma idosa de braços curtos, mãos pequenas e cega de um olho. A cada nova carga trazida pelos funcionários, várias mãos se cruzam num movimento frenético. Quem tem fome tem pressa. E quem chega mais rápido tem chances maiores de encher a panela ao meio-dia.

Dejanira oferece pouca concorrência na xepa da miséria. Pouco depois das 8h, ela sai devagar de volta para casa. O carrinho tropeça no chão, vira, o milho desliza no asfalto. Estoica, ela se agacha e recolhe as guarnições do almoço em família. Morando com o filho e o neto desempregados, Dejanira mal consegue pagar as contas com a aposentadoria de pouco mais de um salário mínimo.

— O dinheiro não dá, tenho sempre que usar meu limite do banco. Agora já gastei todo, nem sei como vou comer até o fim do mês. Falta leite, falta arroz. Carne eu compro um franguinho, um pedaço de porco, quando dá. Ontem fiz orelha de macaco pra mim e pro meu neto. É só misturar farinha, água e um pouquinho de sal e açúcar. Depois frita. Foi a nossa janta.

A 20 quilômetros dali, nos fundos de um terreno no bairro Mathias Velho, em Canoas, Maria Cleci da Conceição espera aflita a visita dos servidores da Ceasa. É a entrega mensal de um sacolão com frutas, legumes e verduras do programa Prato para Todos, que garante a alimentação da auxiliar de serviços gerais e dos dois filhos, ambos desempregados. Aos 67 anos, Cleci perdeu o emprego em 2018, quando a firma em que trabalhava decidiu rejuvenescer o quadro de funcionários. Desde então, tenta sobreviver com a aposentadoria de um salário mínimo.

— Ou eu pago o aluguel, ou compro as coisas pra dentro de casa. Por três meses, fiquei no escuro, cozinhando numa panela de ferro, porque não tinha gás nem luz. Juntava lenha na rua e trazia pra dentro. As pessoas riam. Um dia eu estava olhando as notícias e mostrou aquela fila na Ceasa, todos com uma sacolinha. Então fui lá pedir. Hoje eles trazem aqui. Minha família é a Ceasa, são os meus padrinhos, mais ninguém. Eu chego a rezar para eles chegarem.

E carne, dona Cleci, tem comido?

— Carne? Não fala nesse bicho. Não fala nesse bicho, pelo amor de Deus.

Faz tempo que a senhora não come?

— Ah, um guisadinho com uma polentinha cai tão bem.

A senhora lembra a última vez em que comeu?

— Vizinho, não me deixa doente, o senhor veio me entrevistar. Eu tenho vergonha, não me leva a mal. A coisa tá tão feia. Eu nunca pensei… Olha, eu sou mãe solteira, criei meus filhos trabalhando. Tinha dia que eu trabalhava em dois lugares. Saía da firma às cinco da tarde e ia fazer faxina até nove, 10 da noite, para só depois ir para casa. No outro dia, sete da manhã estava lá de novo. Nunca pensei que um dia eu iria me aposentar e estar nessa situação.

No Centro Histórico, em Porto Alegre, Eduardo Custódio, 47 anos, abre a porta de casa, um sobrado de dois andares a 500 metros da orla do Guaíba. A decoração composta por elementos cenográficos, a sala de TV com antigas poltronas do Cine Guion, o escritório cheio de miniaturas, livros e cartazes e o pequeno estúdio, equipado com refletores, cortinas e espelhos, revelam o ofício dos moradores. Custódio e o marido, Paulo Martins Fontes, 53 anos, conduzem a Cia. Gente Falante, um grupo de teatro de bonecos criado há três décadas.

Multipremiado, o casal tem no portfólio 11 espetáculos consagrados, com os quais já excursionou pela Europa e quase toda América do Sul. Em março de 2020, estavam prestes a estrear uma nova peça quando a pandemia paralisou o planeta. De imediato, tiveram mais de 30 apresentações canceladas. Os cachês de R$ 4 mil sumiram. A renda média, que nos melhores meses girava em torno de R$ 20 mil, foi reduzida a zero.

Com as reservas financeiras se esgotando em três meses, o plano de saúde foi suspenso e as dívidas, renegociadas. A família ajudou pagando algumas contas, os amigos fizeram uma vaquinha, e o auxílio emergencial do governo federal garantiu o fornecimento de água, luz e as recargas no telefone. Um dia começou a faltar comida — o que é diferente de passar fome.

— Faltar comida é dividir o almoço pela metade para ter janta e não saber o que terá para comer no dia seguinte. É dividir o que tem para poder passar a semana. Tinha dias que não tinha nada na geladeira. Daí vinha uma vizinha e nos levava na feira. Batia aqui na porta e nos trazia um prato de comida. Se não fosse assim, não teríamos o que comer. Todo dia é uma batalha — conta Eduardo.

Paulo salienta o que é sentir fome, diferente de faltar comida:

— Fome é uma sensação de morte. Parece que tudo vai acabar. A gente chegou a ficar 15 dias sem ter nada. Eu dormia pra ver se passava. A gente tinha uma vida muito boa. Quando queria comer, comia. Saía pra tomar um café, sentava em algum lugar. Hoje só temos arroz e feijão. Feijão porque uma vizinha trouxe um potinho.

Sobreviver sob o tênue limite entre a fome e a falta de comida também é rotina para Júlio Cezar Costa, 48 anos, e Ana Paula Carvalho, 44. Moradores da Vila João Pessoa, na zona lesteda Capital, eles estão desempregados há três anos, desde que ele foi demitido do emprego de segurança e ela foi dispensada pelas famílias para as quais trabalhava como cuidadora de idosos. Atualmente, o casal vive de bicos, cada vez mais escassos com a pandemia e a crise econômica.

Na pequena casa de paredes rachadas, cada chuva forte provoca medo. As goteiras no teto facilitam a entrada de água por cima, e a correnteza do Arroio Moinho nos fundos do terreno ameaça uma inundação por baixo. É na última peça da casa, à janela do córrego, que eles fazem as refeições, em geral arroz, feijão e ovo, cozidos num fogão à lenha. Em julho, Ana Paula ganhou um botijão de gás de aniversário, mas prefere deixar guardado para alguma emergência.

— Desde o ano passado a gente cozinha só com lenha. Cato na rua, ganho dos vizinhos. Ou tu compra gás ou tu come. Aqui já faltou massa, margarina, café. Teve dias que ela comia uma coisa e eu outra, a gente se combina pra ninguém ficar sem comer. O baque mesmo foi quando cortaram a luz, porque ficamos com medo de perder o pouco que tinha na geladeira. Parcelei a conta em 15 ou 20 vezes, ainda estamos pagando. É um dinheiro que poderia ser usado para comprar comida. Agora a gente vive de doações ou promoção — relata Júlio.

A cada 25 dias, o casal recebe uma cesta básica da ONG Ação da Cidadania, umas das principais entidades de combate à fome do país. Quando conseguem algum serviço temporário, as compras são feitas meticulosamente, acompanhando o calendário de ofertas do comércio local.

— Pão a gente só compra quarta e domingo, na promoção, e depois torra. Tem uma fruteira aqui perto que faz liquidação no domingo, vou lá e compro batata por R$ 1, brócolis por R$ 1. Já comprei margarina por R$ 1 também. Azeite custa R$ 9, não dá para usar, então cozinho com margarina. Essas carnes de R$ 30, R$ 40, faz dois anos que a gente não come, só guisado ou frango. Agora mesmo estamos há dois meses sem comer carne vermelha. Esses dias consegui um bico. Ganhei R$ 70 e comprei carne de porco a R$ 9,99. Estamos reaprendendo a viver, somos heróis da resistência — resume Júlio.

Com camisa branca impoluta, calça jeans e sapatos pretos lustrosos, Josué Telles de Lima destoa dos demais ocupantes da fila formada na Praça Princesa Isabel, no bairro Azenha, em Porto Alegre. Em geral, as 150 marmitas diárias distribuídas pela Cozinha Solidária do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) atraem moradores de rua. Nas últimas semanas, porém, a carestia tem levado ao local motoristas de aplicativos, motoboys, desempregados que circulam pelas redondezas atrás de ocupação e até mesmo funcionários de empresas da região.

Aos 68 anos, Josué já trabalhou na construção civil, em lojas de sapatos e posto de combustíveis. Nunca esbanjou, mas sempre teve uma vida digna. Agora aposentado, recebe um salário mínimo por mês e precisou fazer um empréstimo para pagar o funeral de um parente. A dívida liquidou suas finanças. Hoje ele mora de favor numa casa emprestada e precisa recorrer às quentinhas para garantir ao menos o almoço.

— Pego comida aqui todo dia. O pouco que sobra eu cuido: é a janta. Quando tem, tem. Quando não tem, não janto. Agora faz bastante tempo que eu não janto, uma semana ou mais. Bate a fome, dá uma dor no estômago, mas vou fazer o quê? Carne às vezes eu como, vou na casa de um, na casa de outro, daí eu como. Tenho muita amizade, mas não vou chegar todo dia na casa dos outros. Quando sobra um dinheirinho eu compro ovo. Mas essa marmita aqui é muito boa. Se não tivesse isso aqui nem sei como ia fazer. Não tenho nada de comida em casa. Nunca vivi uma situação como essa. Eu tinha uma vida boa quando era mais novo. Trabalhava, vivia bem, até um dinheirinho no banco eu tive. Agora não tenho mais nada. Sou aposentado, mas me sobram só R$ 200 por mês. Ficou ruim a situação pro meu lado depois de velho. Na idade que tô, não tenho mais o que fazer também. Esperança de que eu vá viver bem de novo é bobagem. Vou fazer 69 anos, não faço mais planos pra vida. Não tem emprego pros mais novos, vai ter pra mim?

A resignação de Josué diante do próprio destino é comum a vários personagens desta reportagem. Antonio Augusto Costa Lima, o primeiro a relatar os sintomas da fome, no início do texto, era casado, tinha uma vida tranquila e vários clientes. Sem carteira da OAB, conduzia os processos que a ex-mulher, advogada, assinava.

Com a separação, veio a ruína. Hoje ele vive num terreno invadido, numa casa sem água nem energia elétrica. Lava as roupas na praça, na mesma torneira onde enche bombonas para tomar banho.

Com a renda restrita a R$ 150 do Bolsa Família, Antonio mendiga passagens no trensurb para se deslocar entre Canoas a Porto Alegre e conseguir comer no Pop Rua RS, um centro de acolhimento criado pelo governo do Estado que todo dia distribui café da manhã, almoço, café da tarde e jantar a 300 pessoas no CTG Estância da Azenha. Depois do almoço, ele senta à sombra de uma árvore e escreve, rascunhando poemas e histórias enquanto esperando a hora da janta.

Antonio diz estar desenvolvendo quatro peças de teatro e pretende vender poesias nos semáforos. Não procura mais emprego. Cansou de pedir trabalho. Vive apenas atrás da próxima refeição, “qualquer coisa que se debruce na língua/ que distraia em mordidas, mordidelas, as arcadas dentárias/ que enterre, soterre a líquida, tão ácida saliva, tão sempre salivante por tão famélica/ que pela goela passe, que desça/ que ao estômago chegue/ E lá chegando se assente/ alimente”, conforme versou em folhas catadas ao léu.

— Pensei que ia ser fácil pra mim conseguir emprego. Sei vender, me comunico bem, escrevo bem, sei até cozinhar. Comecei a procurar, me oferecer. Nada. Nunca apareceu nada. Daí resolvi que vou ser poeta, escritor, dramaturgo. E dane-se. Se eu não conseguir, morri — conforma-se.
.

Por: Fábio Schaffner
Fonte: GaúchaZH