Combate à Fome em FOCO | Análises e Estudos
Afinal, o Brasil está ou não no Mapa da Fome da ONU?
Por: Murilo Pajolla
A saída do Brasil do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU) em 2014 foi um marco mundialmente reconhecido no caminho à promoção do direito humano à alimentação adequada e saudável.
No entanto a reversão dessa tendência nos últimos anos, identificada claramente por organizações que monitoram o problema da insegurança alimentar, não alterou o status brasileiro no última mapa divulgado pela Organização.
Em 2020, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, em inglês) ainda colocava o Brasil no grupo de países com menos de 2,5% de prevalência subalimentação entre a população, contrastando com as conclusões de pesquisadores brasileiros.
O Brasil de Fato consultou a ONU e instituições que se debruçam sobre a questão da fome para entender: afinal, o Brasil está ou não no Mapa da Fome?
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Construção do mapa
Em primeiro lugar, é preciso entender o que significava estar “no Mapa da Fome”. Até 2014, a ONU utilizava a ferramenta como forma de acompanhar os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio.
O Mapa era construído a partir de um indicador criado pela própria organização, o PoU (Prevalence of Undernourishment, em inglês), uma medida de acesso adequado a alimentos.
O resultado era uma estimativa da porcentagem da população cujo consumo alimentar é insuficiente para manter uma vida ativa e saudável. Baseado em uma média móvel dos últimos três anos, o indicador é considerado uma abordagem indireta para aferir a situação da insegurança alimentar.
“A PoU não mede acesso a nutrientes e à alimentação saudável como um todo, não considera fatores como idade, sexo, etc, baseando-se nas calorias necessárias mínimas para viver”, explicou o Instituto Fome Zero, dirigido por José Graziano, mentor do programa Fome Zero.
Segundo o Instituto, pesquisas que utilizam a EBIA (Escala Brasileira de Insegurança Alimentar), aplicada no Brasil pelo IGBE, fornecem informações mais abrangentes sobre a situação de insegurança alimentar da população.
“O Brasil deixou de aparecer no mapa da fome com sua área pintada em cores quentes em 2014, ou seja, deixou de ter a fome considerada problema estrutural”, afirmou o Fome Zero.
“A conquista ocorreu após mais de uma década de implementação, acompanhamento e aprimoramento de políticas públicas de promoção do direito constitucional à alimentação, como os 20 programas incluídos no programa guarda-chuva Fome Zero, utilizado posteriormente pela FAO para promover a segurança alimentar em outros países”, completa o Instituto.
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Mudança na abordagem
No mesmo ano em que o Brasil celebrava o marco, a ONU modificava a forma de comunicar os dados sobre os países subdesenvolvidos, descaracterizando o Mapa da Fome tal como ele era conhecido até então.
“O Mapa da Fome calculado pela FAO durante a vigência dos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio era um”, esclarece Renato Maluf, coordenador da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan).
“Foi com base neste método indicador que se afirmou que o Brasil estava fora do Mapa da Fome. Depois, no lugar das metas do desenvolvimento do milênio, a FAO passou a usar outra abordagem para aferir o cumprimento dos objetivos”, complementa.
Saíram de cena os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio e entraram os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), conjunto de 17 metas globais estabelecidas pela Assembleia Geral das Nações Unidas.
“A FAO deixou de publicar o Mapa da Fome como ferramenta de divulgação dos dados de fome no mundo, mas seus indicadores ainda são usados para avaliação inclusive dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável”, explicou a Oficial de Comunicação da FAO no Brasil, Aline Czezacki Kravutschke.
O Programa Alimentar Mundial (PAM), órgão de auxílio alimentar da ONU, continua a publicar anualmente uma representação gráfica das estimativas da fome baseadas no relatório “O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo”.
Na última edição, o Brasil aparece com menos de 2,5% da população comendo menos do que deveria. O índice é calculado com base no PoU, mas não é o mais adequado para aferir realidade dos brasileiros.
Segundo o coordenador da Rede Penssan, a inconsistência decorre da diferença entre os indicadores usados pelo Brasil e pela ONU.
“O Brasil aparece com esse índice [2,5%] porque o indicador é outro, eles não são comparáveis. O percentual de pessoas subalimentadas [PoU] é uma medida distinta da Escala de Insegurança Alimentar que mede a percepção sobre a sua condição e da sua família e indica, no caso da Insegurança Alimentar Grave, quando o respondente diz que ao menos um membro da família naquele período passou fome. Isso é diferente de calcular o percentual de pessoas subalimentadas, que é o PoU”, afirmou Renato Maluf.
A FAO aponta que o relatório anual com dados da fome é incapaz de detectar melhoras abaixo de 2,5%. Dessa forma, seria incorreto concluir que um país superou o problema baseado nesse índice.
A própria organização admite que os dados levantados pelo IBGE e a Rede Penssan, com o uso da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), são os mais adequados para criar um Mapa da Fome no Brasil.
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Novo mapa da fome
A Rede Penssan aponta que a insegurança alimentar grave – ou seja, a fome – atinge 9% da população. Os resultados evidenciam que, em 2020, a insegurança alimentar e a fome no Brasil retornaram aos patamares próximos aos de 2004.
Os dados são da pesquisa “Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil”, elaborada pela Rede Penssan, e mostram que o Brasil retrocedeu 15 anos em cinco, voltando a ter a fome como problema estrutural.
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“Eram 10,3 milhões de pessoas em IA [insegurança alimentar] grave em 2018, passando para 19,1 milhões, em 2020. Portanto, neste período, foram cerca de nove milhões de brasileiros(as) a mais que passaram a ter, no seu cotidiano, a experiência da fome”, afirma a pesquisa da Rede PENSSAN.
Segundo a pesquisa, 112 milhões de brasileiros sofrem algum grau de insegurança alimentar.
“Além da fome, é preciso dar atenção ao aumento das outras manifestações de insegurança alimentar, a leve e a moderada, que embora não representem fome, representam uma ruptura com o padrão alimentar da população, em termos do comprometimento da qualidade e quantidade”, alerta Renato Maluf.
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Edição: Vivian Virissimo
Fonte: Brasil de Fato