A pandemia e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável relacionados à fome
O relatório sobre o Estado da Fome e da Segurança Alimentar e Nutrição do Mundo em 2021 (SOFI), elaborado pela Organização para a Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO), o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (IFAD), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), o Programa Mundial de Alimentos e a Organização Mundial da Saúde (OMS), apresenta informações sobre o atual estado da fome e da insegurança alimentar no mundo. Segundo as estimativas do relatório, 2,37 bilhões de pessoas não tiveram acesso adequado à alimentação em 2020: quase um terço das pessoas do mundo!
Os danos causados pela pandemia nas relações econômicas e sociais podem significar um retrocesso nos avanços previamente alcançados para o cumprimento dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) e, principalmente, do Objetivo 2 – Fome Zero e Agricultura Sustentável – cuja meta é “acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável”.
O mundo já estava faminto e retrocedendo a passos curtos na erradicação da fome desde 2015. A crise apenas agravou o quadro, principalmente para as nações que já vivenciavam situações de extremos climáticos, conflitos, desigualdade e pobreza. Tendo em vista esse cenário global, as organizações internacionais chamaram a atenção para alguns aspectos preocupantes, como o impacto mais grave para as mulheres, por causa da desigualdade nas relações de gênero, e a relação entre insegurança alimentar e renda, devido ao alto custo no acesso à alimentação saudável.
A desaceleração econômica generalizada afeta em especial os grupos mais pobres, já que estes gastam a maior parte da renda na alimentação. Além disso, segundo o SOFI, em dezembro de 2020, os preços globais dos alimentos ao consumidor alcançaram os maiores números dos últimos seis anos. E, em média, o custo de uma alimentação saudável é cinco vezes mais cara do que uma dieta apenas o suficiente em energia (rica em amido).
Os impactos da pandemia no dia-a-dia da população, por causa das restrições à mobilidade e fechamento de estabelecimentos, causaram uma mudança nos padrões de consumo dos alimentos. Os bloqueios à circulação afetaram a cadeia de distribuição de alimentos, o que, posteriormente, culminou em um aumento dos preços e afastou as pessoas com renda mais baixa, ou que tiveram a renda afetada pela pandemia, do consumo de alimentos frescos e in natura, levando a uma preferência ou necessidade de consumo de alimentos mais baratos e que possuíssem uma duração maior, como os ultraprocessados. Dados do SOFI apontam que, no Brasil, o consumo de alimentos ultraprocessados aumentou em 31% das famílias com crianças.
Levando em conta todos esses abalos, o SOFI avaliou a evolução das sete metas globais de nutrição, de acordo com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU. Estas buscam diminuir as taxas de nanismo, excesso de peso e obesidade, anemia em mulheres em idade reprodutiva, recém-nascidos com baixo peso, malnutrição severa e promover a amamentação exclusiva (nos primeiros 6 meses de vida). No entanto, um dos principais pontos de destaque no documento é o aumento dos níveis de pessoas subnutridas no mundo. As taxas de subnutrição, que se mantiveram quase inalteradas de 2014 a 2019, passaram por um aumento significativo com a pandemia de Covid-19 e, em 2020, os índices cresceram de uma média de 8,4% para 9,9% da população mundial.
As metas que rodeiam principalmente as mulheres são as de anemia, amamentação e recém-nascidos com baixo peso. Nenhuma região se encontrava no caminho para atingir as taxas desejadas em 2030, além de que as projeções de anemia nas mulheres com idade reprodutiva apresentavam tendências de estagnarem e/ou se agravarem em algumas sub-regiões. Da mesma forma, com as metas de baixo peso ao nascer. Já as de amamentação exclusiva até os seis meses de idade possuíam melhores resultados e estavam se encaminhando para atingir as metas de 2025 (alcançando pelo menos 50%), no entanto, não alcançariam a de 2030 (70%). O progresso da amamentação estava sendo observado em todas as regiões, exceto Ásia Oriental e Caribe, e as sub-regiões da Ásia central e Sul da Ásia podem conseguir atingir essa meta se os avanços continuarem no mesmo ritmo.
O aumento no número de subnutridos no mundo indica mais uma dificuldade no enfrentamento da fome e um retrocesso nos avanços obtidos anteriormente à pandemia. Conforme o SOFI, os desafios para a evolução das metas de nutrição adequada até 2030 são muitos. Em 2020, mais de 22% das crianças entre zero e cinco anos foram afetadas com algum tipo de atraso no crescimento e desenvolvimento em decorrência da desnutrição, 6,7% foram afetadas com malnutrição severa. Junto da subnutrição, o sobrepeso é outro problema grave que afeta crianças com até 5 anos em todo mundo. Em 2020, 5,7% das crianças nessa idade foram diagnosticadas com excesso de peso. Entre as regiões mais afetadas estão a Ásia e a África, onde a maioria das crianças subnutridas de zero a cinco anos do mundo vivem. A cada dez crianças com nanismo no mundo, nove são das regiões mencionadas, além de sete a cada dez crianças com sobrepeso também estarem nessas regiões.
É importante destacar que o momento atual não facilitou a coleta de dados e que ainda não é possível uma compreensão total sobre os impactos da pandemia, principalmente a longo prazo, mas já se observa que essa crise deixará efeitos prolongados e nocivos na segurança alimentar global. As análises indicam que 30 milhões de pessoas a mais podem enfrentar a fome em 2030, em comparação com as projeções feitas antes da pandemia.
Por fim, as instituições da ONU avaliam que é necessário um empenho extraordinário para ir além de apenas solucionar as consequências da pandemia e avançar em direção ao cumprimento das metas das ODS. São necessários esforços coordenados entre o setor público, privado, academia, sociedade civil e instituições internacionais para a promoção de uma verdadeira mudança na estrutura do sistema alimentar. Isto é um imperativo moral diante de tantas possibilidades técnicas de produção e de distribuição de alimentos saudáveis disponíveis no planeta. A questão é saber se haverá vontade política para colocar esses esforços em marcha. .
Por Ellen Maria Oliveira Chaves e Paola Aparecida Azevedo de Souza* *Integrantes do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais (FomeRI) da UFPB. fomeri.org Edição: Maria Franco Fonte: Brasil de Fato