Combate à Fome em FOCO | Análises e Estudos  


Conteúdo enviado por Reginaldo Junior, Mobilizador COEP do Rio de Janeiro
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De que forma a desigualdade se reflete na mesa dos brasileiros
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Depois de conseguir sair do Mapa da Fome da ONU, o Brasil parece ter embarcado em um retrocesso sem fim, que faz com que a insegurança alimentar volte a bater recordes mesmo em um país que produz tantos alimentos

Foi-se o tempo em que apenas caviar era “comida de rico”, como canta Zeca Pagodinho. Já antes da covid-19, estava cada vez mais difícil para o brasileiro colocar o básico na mesa. Com a pandemia, a situação é ainda mais preocupante. De acordo com o estudo Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil, de 2020, 59,4% da população brasileira encontra-se em situação de insegurança alimentar, sendo que 15% passa fome.

Os dados têm gênero, cor e endereço historicamente conhecidos. É a desigualdade brasileira refletida nas mesas: mulheres chefes de família, negras, do Norte e Nordeste e de regiões rurais têm maior risco de insegurança alimentar, assim como indígenas, quilombolas e a população LGBTQIA+.

O problema vai além de não ter o que comer. No sexto país mais desigual do mundo, 117 milhões de pessoas não têm acesso regular e suficiente a alimentos de qualidade sem comprometer outras necessidades essenciais – e o desespero aumenta com o fim do auxílio emergencial de R$150 a R$600 oferecido ao longo da pandemia e as incertezas do Auxílio Brasil, programa do Governo Federal que substituiu o Bolsa Família. Os impactos são sentidos no popular “prato feito” – não estamos falando de caviar. Segundo o estudo, 44% das pessoas reduziram o consumo de carnes e 41%, o de frutas. Montar um prato colorido, como aconselham os nutricionistas, é desafiador.
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Para Milene Cristine Pessoa, professora do Departamento de Nutrição da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e líder do Grupo de Estudos, Pesquisas e Práticas em Ambiente Alimentar e Saúde da universidade, uma alimentação de qualidade deve priorizar a diversidade e ter como base alimentos frescos, como cereais, leguminosas, frutas, e verduras, laticínios e carnes. Melissa Luciana de Araújo, doutoranda em Saúde e Nutrição pela Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), pesquisadora do mesmo grupo e coordenadora da comissão permanente do Direito Humano à Alimentação Adequada do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável de Minas Gerais, concorda e acrescenta que tais alimentos devem ser isentos de agrotóxicos e advindos de uma produção sustentável para o meio ambiente.

Entretanto, o acesso a eles é escasso por diversos fatores. Primeiro, pelo crescimento da pobreza e da inflação no país, intensificados pela pandemia – que provavelmente produzirá dados ainda mais alarmantes em 2021. Outro fator é a popularização dos produtos ultraprocessados, mais acessíveis, mas pouco nutritivos. Além disso, há um grande aumento na liberação de uso de diversos agrotóxicos no Brasil.

As pesquisadoras lembram ainda que o Guia Alimentar para a População Brasileira, de 2014, publicado pelo Ministério da Saúde, considera a alimentação para além dos nutrientes. É o caso das culturas alimentares diversas, que preservam os saberes dos indígenas, dos quilombolas, das populações ribeirinhas, urbanas, entre outras. Esses valores são tão essenciais quanto os nutricionais presentes na alimentação. Mas o que é direito social vira luxo em uma realidade tão desigual.
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Você deve lutar pela xepa da feira e dizer que está recompensado

Apesar da atual realidade assustadora, o cenário já foi diferente. Em 2003, foi implementada uma série de políticas econômicas, sociais, de segurança alimentar e para a agricultura familiar, que ficou conhecida como estratégia Fome Zero. Dez anos depois, o país atingia os menores patamares de insegurança alimentar de sua história – 22,6%, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2013.

Em 2014, o Brasil deixou de fazer parte do Mapa da Fome, uma lista da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). “O Mapa era lançado todos os anos para acompanhar um dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio da ONU: diminuir pela metade o número de pessoas com fome no planeta até 2015”, explica Daniel Balaban, representante no Brasil do Programa Mundial de Alimentos (WFP) e diretor do Centro de Excelência contra a Fome.

Com as crises econômica e política, já houve alguns retrocessos ainda em 2017, como aponta a Pesquisa de Orçamentos Familiares. Segundo Marco Antonio Teixeira, sociólogo, pesquisador com pós-doutorado na Universidade Livre de Berlim e coordenador científico do grupo de pesquisa Alimento para Justiça, a descontinuidade de uma política de valorização real do salário mínimo, bem como o desemprego, contribuíram para isso. Ele também destaca os prejuízos oriundos da aprovação do teto constitucional dos gastos públicos, em 2016; do desmantelamento de políticas de apoio à agricultura familiar e camponesa, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae); e da extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), em 2019.

“Em resumo, o que se pode observar é um projeto político deliberado que, ao destruir ou enfraquecer políticas públicas que garantem a segurança alimentar, viola o direito humano à alimentação adequada”, completa. Sem levar em conta essas pesquisas sobre a situação interna do país, em seu discurso na Assembleia Geral da ONU no final de 2020,

De fato, o Brasil é um dos líderes mundiais em agronegócio e o terceiro maior exportador de alimentos do mundo, segundo a FAO. Logo, produzimos e exportamos muito. Resumindo, a comida não fica aqui. “Hoje, vale mais a pena para o grande produtor exportar, porque eles ganham em dólar e o real está defasado”, explica Daniel. Além disso, tamanha desvalorização do real faz com que os grandes produtores, ao venderem no mercado interno, queiram aumentar o valor para compensar a diferença em relação ao mercado externo. “É a dolarização da economia brasileira”, completa.

Daniel acrescenta que boa parte das commodities (produtos de origem primária, como petróleo, carvão mineral, soja, cana-de-açúcar e outros) produzidas pelo agronegócio são para consumo animal no exterior. “Para produzir esses alimentos, é preciso muita água e outros recursos naturais. Os países que compram do Brasil, na verdade, compram esses recursos. Utilizam os nossos recursos, enchem os bolsos apenas dos produtores, e a população não está feliz. O modelo está errado”, defende.

o presidente Jair Bolsonaro disse, sem apontar nenhuma referência, que o Brasil garantiu, em meio à pandemia, a segurança alimentar de um sexto da população mundial.

O pesquisador Marco Antonio acrescenta que os recursos são finitos e devem ser distribuídos democraticamente – o que não ocorre. O agronegócio ocupa a maior extensão de terras destinadas à atividade agropecuária (77%) de acordo com o Censo Agropecuário de 2017. Já a agricultura familiar, que ocupa uma parcela bem menor de terras, representa 77% dos estabelecimentos agrícolas e é responsável pela oferta de boa parte do que consumimos internamente.

“O Brasil produz alimento suficiente para alimentar o nosso país e muitos outros. O grande problema, hoje, é a questão econômica: as pessoas não têm dinheiro para comprar uma alimentação de qualidade. Isso é fruto da crise econômica. A fome é o efeito perverso de uma política econômica perversa”, explica Daniel.
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Tem gente com fome

Marisa Mittmann da Silva, 63 anos, moradora de Canoas, cidade da Região Metropolitana de Porto Alegre, não vai ao mercado, mas ouviu falar sobre o aumento do preço dos alimentos. Ela trabalha há 10 anos coletando lixo reciclável e se alimenta exclusivamente de doações vindas de igrejas do bairro em que trabalha e de vizinhos.

A fome é uma velha conhecida de Marisa. Seu pai era caminhoneiro e ficava muito tempo longe de casa. Durante as viagens, sua mãe, que não podia trabalhar devido a um problema cardíaco, ficava responsável por ela e seus seis irmãos. “Tu não tem merenda?, me perguntavam. Eu respondia que não e ia tomar uma aguinha para passar a fome. A mãe sempre dizia que a gente tinha que tomar água para passar a fome. Eu gravei e dizia isso para as minhas colegas”, conta.

Quando começou a estudar, ainda não havia o oferecimento de marmitas pelas escolas públicas no Brasil. Ao longo dos anos, ela relata que algumas medidas começaram a ser postas em prática: “Aí eles começaram a dar aquele ‘triguinho’ com leite. Eu comia – tenho até vergonha –, quatro xícaras cheias, porque eu não tomava café da manhã, não tinha. Meio-dia, eu ia pro colégio, não comia, não tinha. Eu ia varada de fome, imagina, uma criança”.

Por vezes, seu pai adoecia, devido a diabetes. Esses eram momentos de muita fome, já que boa parte das refeições da família vinham das viagens a trabalho. Marisa e sua mãe preparavam chás e cuidavam do pai na medida do possível, já que também dependiam do sistema público de saúde ainda muito precário na época, como lembra: “Tu consultava, recebia alguns remedinhos e te mandavam pra casa. Tu tinha que te curar em casa.”

Ainda na terceira série do Ensino Fundamental, ela precisou largar os estudos para cuidar dos irmãos. Começou a trabalhar cedo também, para ajudar a colocar comida na mesa da família. Hoje, quando recebe, além de alimentos, outros itens que já tem, Marisa doa. “Quando eu doo e a pessoa pega, e eu vejo a pessoa com aquilo, meu coração parece que floresce”, conta. Na falta de assistência e oportunidades do Estado, Marisa sabe a importância de uma doação.
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Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome

Se a desigualdade alimentar é um problema político-econômico, só há uma forma de solucioná-lo: com políticas públicas. Marco Antonio exemplifica algumas: a retomada de um auxílio emergencial robusto, o fortalecimento de políticas de segurança alimentar, a geração de emprego e a valorização do salário mínimo acima da inflação.

Já realizadas no Brasil, tais medidas não são colocadas em prática novamente, devido à atual matriz econômica. Enquanto o gás de cozinha custa 10% do salário mínimo, o mercado financeiro brasileiro cresce. De acordo com a B3, bolsa de valores oficial do Brasil, o número de investidores na bolsa teve um aumento de 43% em 2021. “O sistema econômico é perverso para as pessoas com pouca renda e benéfico para as que têm bastante. Quanto mais dinheiro você tiver no banco, mais ele rende. O Brasil virou uma espécie de cassino”, diz Daniel.

Sendo assim, vale mais a pena investir no mercado financeiro do que abrir um negócio que geraria empregos, movimentaria a economia do país, ajudaria os pequenos empreendedores e a sociedade em geral. “Quanto mais financeirização, menos oportunidades para as pessoas, e a medida de combate à fome mais eficiente não é dar comida, é dar oportunidade”, defende.

Para Daniel, é preciso haver uma mudança de mentalidade: “Em outros países, a população se conscientizou da importância de apoiar as classes média e baixa. Mas, para que tenhamos governos interessados em apoiá-las, precisamos de uma sociedade interessada em acabar com a fome e a pobreza.”

Tal conscientização passa pelo entendimento de que não é possível viver em paz em uma sociedade desigual e faminta. “Onde tem fome, tem conflito. Quer acabar com a violência? Acaba com a fome. E acabar com a fome é fazer com que o papel do Estado seja cumprido”, defende Daniel.
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E vamos botar água no feijão

Enquanto as oportunidades não chegam e as barrigas seguem roncando, quem pouco tem é quem mais ajuda. Iniciativas populares têm salvado muitas pessoas. São cidadãos que, literalmente, botam mais água no feijão para levar o que, muitas vezes, é a única refeição do dia para muitos.

A ONG Juntos Somos Mais Fortes, de Porto Alegre, é um exemplo disso. Criada por Paulo Cezar Félix Barbosa, de 44 anos, em março de 2020, ela atua em 28 comunidades da capital gaúcha. Os voluntários entregam marmitas, lanches, cestas básicas e agasalhos para moradores e pessoas em situação de rua.

“A gente percebe que, em cada ação, aumenta o número de pessoas passando necessidades. A fome só aumenta. Tem lugares em que a gente chega e as pessoas estão de dois a três dias sem comer, só contando com o dia em que vamos levar o alimento para elas”, conta Paulo Cézar, também conhecido como Fubá.

A ONG Juntos Somos Mais Fortes não conta com apoio governamental, e as doações vêm, principalmente, de quem também não tem condições abundantes: “A parte da sociedade que tem como ajudar não ajuda. É o pobre ajudando o pobre. Infelizmente, é isso.” Devido às condições financeiras, a ONG ainda não possui regulamentação.

Eles realizam 10 ações por mês. Todas as quartas-feiras, os integrantes distribuem cachorros-quentes para crianças em vulnerabilidade social. Às sextas, há entrega de marmitas para pessoas em situação de rua e famílias que necessitam. As refeições são compostas por arroz, feijão, polenta, massa e frango. Além disso, duas vezes no mês, são distribuídas cestas básicas. Em um ano e sete meses, a organização já entregou 36 mil marmitas e 25 mil lanches. Para ajudar, basta acompanhar e contribuir com os pedidos de doações pela página do Facebook da organização.

A solidariedade da água a mais no feijão, presente principalmente no “Brasil” que passa por mais dificuldades, não pode ser, entretanto, o caminho de combate à desigualdade alimentar. A lógica atual, que faz com que a xepa da feira seja vista como recompensa e que ofusca o brilho de tanta gente com fome, precisa ser questionada. Em um país tão rico em biodiversidade e capaz de produzir tantos alimentos, chega a ser vergonhoso perceber que mais da metade dos brasileiros nunca vê nem come o básico. Caviar? Sequer ouvimos falar.
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Por: Giovanna Parise
Fonte: Sextante/UFRGS