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Solidariedade: o ato de enxergar o que o poder público insiste em não ver

Em um dia de trabalho voluntário, junto a uma associação atuante na cidade de João Pessoa, fomos realizar a distribuição de quentinhas em uma comunidade na região do bairro Mangabeira VIII denominada Aratu. O Aratu consiste em assentamento onde sobrevive um elevado número de famílias em condição de vulnerabilidade social, moradias precárias, carentes de cuidados de saúde e com precário acesso à alimentação.

Assim que entrei na comunidade, de bate-pronto, observei em um muro as letras que compõem a sigla representativa de uma das facções do tráfico de drogas atuante em vários bairros da cidade. Pensei nas diversas complicações que tal situação poderia trazer ao que será narrado em seguida neste texto, mas optei por não detalhar estes pensamentos aqui. Também reparei a presença de representantes religiosos, majoritariamente de base neopentecostal, mas adoto a mesma postura que para as reflexões decorrentes da presença do tráfico, tendo em vista a complexidade relativa à cada uma destas constatações, o que exigiria um texto maior em que eu tratasse separadamente cada um destes.

E explico: o objetivo deste texto não é descrever detalhadamente o que se vê no Aratu, que tende a ser situação semelhante ao que se pode observar em outras comunidades de assentados na região metropolitana de João Pessoa. O objetivo deste texto é narrar e estabelecer uma reflexão, ainda que incompleta, de um caso que me saltou os olhos na visita supracitada. A esperança é que a narrativa possa ilustrar, informar e levar outras pessoas a enxergar, com mais empatia e solidariedade, a situação de vulnerabilidade que condiciona a vida de muitas pessoas que estão bem próximas aos olhos. Talvez, retirar, ao menos, a falsa percepção de que estão distantes.

Ao finalizar a ação de entrega das quentinhas, uma das representantes comunitárias locais nos abordou e disse que precisava de ajuda para lidar com um caso. O que estou chamando de um caso talvez soe impessoal, mas, longe disso, é uma jovem. Não sei precisar a idade dela, mas a minha percepção é de ser uma jovem que não passava dos vinte e poucos anos de idade. Perguntamos que tipo de ajuda ela precisava e o que nos foi dito é que ela estava passando por necessidades. E, por necessidade, entenda: acima da média das necessidades já vivenciadas pelo contingente populacional local. Trocando em miúdos, a situação da jovem moça era (e ainda é) de extrema vulnerabilidade.

Perguntamos se poderíamos falar com a moça, o que nos foi respondido afirmativamente. A jovem nos foi apresentada e trocamos rápidas palavras. Ela se mostrava acuada, até mesmo intimidada, não com a nossa presença, mas com a condição em que vivia. Não descarto outros componentes que podem contribuir para a intimidação, dentre eles, a própria condição de sobrevivência, o controle social do local, quem a interpelava, pois erámos três pessoas (duas mulheres e um homem), até a presença de um homem na conversa; mas me parecia que a sua fragilidade era um elemento muito forte.

A descrição da situação da moça, obviamente incompleta, pois o primeiro contato foi breve e em condições nada adequadas, é a seguinte: mulher, solteira, com quatro crianças (três meninas e um menino). Destas quatro crianças, duas muito pequenas, sendo uma delas de colo. Uma menina já maior, da qual suspeito ter idade próxima aos 9, 10 anos. Os demais, pequenos com uma pequena diferença de idade. Vivia (e ainda vive) em uma casa que pode ser descrita como um local sem a mínima condição de moradia. Não possuía nem mesmo as condições mínimas higiênicas e para cozinhar o que quer que fosse. Desempregada, consequentemente, não possuía renda para comprar um botijão de gás, alimentos, bens de higiene para ela ou para as crianças. E, permita-me um comentário à parte, na atual conjuntura de preços em elevação, entre eles o preço do botijão de gás, não é exagero supor que vários outros/as brasileiros/as estão em situação semelhante.

Na primeira conversa com a jovem, vimos que faltavam palavras para ela descrever o que ela necessitava. Imagino que faltou a coragem para ela nos dizer que necessitava de tudo. Suponho, também, que a ausência de palavras, um silêncio desconfortante, reforçava e ressaltava a condição de fragilidade à qual ela estava submetida, na verdade, imersa e subordinada. Entregamos as quentinhas, como fazemos normalmente, e, na saída, questionamos se ela havia conseguido pegar a quantidade necessária. Ela nos informou que pegou apenas para as crianças. Este foi o final do primeiro contato. Saímos do Aratu com aquela situação na cabeça. Acabei percebendo que faltavam palavras para mim também.

Na semana seguinte, duas pessoas da mesma associação voltaram ao Aratu. Claro que, para quem tem sensibilidade e se importa com a condição do outro, do semelhante, aquela situação não passaria desapercebida. As duas pessoas que voltaram ao Aratu tiveram mais tempo e condição de ver a situação dela e conheceram a moradia desta moça. As percepções iniciais foram confirmadas. A vulnerabilidade era tamanha que, imediatamente, os canais informais de comunicação foram acionados e algumas pessoas, sensibilizadas pela situação e pelo relato, fizeram doações de diversos tipos de bens (de fraldas a colchão) para ajudá-la.

A rápida repercussão quanto à narrativa da situação na qual a jovem vivia me remeteu a um texto (e a uma fala em um evento acadêmico) em que o professor aposentado do Instituto de Economia da Unicamp Walter Belik menciona a estimativa de que 60 milhões de brasileiros e brasileiras dependem da solidariedade para se alimentar, referindo-se, especialmente, ao contexto da pandemia de Covid-19. Solidariedade é uma palavra cujo significado e abrangência tem grande relevância no cenário brasileiro e, em especial, para que pessoas em situação semelhante à narrada recebam auxílio.

Para além da estimativa mencionada por Walter Belik, entende-se que a situação, sucintamente narrada acima, não é um caso excepcional, um caso isolado. Ao contrário. Casos como estes podem ser encontrados em profusão na nossa realidade. Ouso dizer que a maioria da situação das mulheres que encontramos nestas comunidades é de extrema vulnerabilidade, de total insegurança, não somente alimentar.

Mas retorno à constatação levantada pelo professor, essa mesma que estima que 60 milhões de brasileiros e brasileiras vivem em situação semelhante a esta descrita, dependendo de ação caritativa e solidária de algumas pessoas, isolada da atuação do poder público. É difícil imaginar o que é sobreviver apoiado, apegado na esperança de que, em algum momento, a caridade alheia, derivada da inconformidade, da revolta ou, ainda, da compreensão da ausência da assistência e/ou ação pública diante da situação destas pessoas, possa salvar o dia, ou atenuar o momento mais crítico de fome, ou aliviar, momentaneamente, a precariedade da condição de sobrevivência imposta.

Estar, de certa forma, distante desta posição de vulnerabilidade, pode nos tornar insensíveis à situação. Ao mesmo tempo, tenho observado que há, na cidade de João Pessoa e vizinhas, um número considerável de iniciativas (individuais e coletivas) que tentam atenuar a dura sobrevivência imposta pela ausência de condições mínimas de vida. Compreendo que é necessária a existência destas ações e iniciativas emergenciais, que aliviam a crueldade da fome, mesmo que no sentido de tratar da urgência.

Contudo, ainda utilizando a estimativa citada por Walter Belik, entendo ser imperativo levantar uma questão: qual a limitação da solidariedade e da ajuda prestada por estas iniciativas? E adianto que não tenho resposta a tal indagação. Tenho, sim, a indignação quanto à ausência da atuação do poder público que transforma estas pessoas em sujeitos invisíveis. Mas, ao mesmo tempo, estes sujeitos invisíveis são socorridos por ações solidárias e caritativas. Tenho, ainda, a compreensão de que a atuação destas iniciativas realiza uma ação que é (ou deveria ser) responsabilidade do governo. Então, me parece que há um problema visual, já que alguns atores sociais conseguem enxergar estas pessoas enquanto o governo não as enxerga.

Enquanto isso, estas pessoas sobrevivem graças à solidariedade praticada por projetos sociais, ações individuais e coletivas que terminam por salvar a urgência do dia.
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Por: Alexandre Cesar Cunha Leite, Professor da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), coordenador do Grupo de Pesquisa em Ásia Pacífico e pesquisador do FOMERI
Edição: Maria Franco
Fonte: Brasil de Fato