Quem são as pessoas que buscaram comida no caminhão de lixo em bairro nobre de Fortaleza
Sandra, Maria de Lourdes e Francisco Antônio compartilham a aflição pela incerteza sobre o sustento dos filhos. Eles perderam a fonte de renda durante a pandemia e se depararam com a fome
Em busca do sustento da família, Sandra Holanda, de 57 anos, sai de casa carregando um carrinho de mercantil mesmo que o alimento não venha das prateleiras. O que consegue levar para o marido e quatro netos, na verdade, são sobras de frutas, verduras e carnes retiradas dos sacos durante a coleta de lixo. Ela faz parte do grupo de Fortaleza em situação de desamparo extremo retratada em vídeo que viralizou.
O flagrante ganhou notoriedade quando o motorista por aplicativo André Queiroz publicou a situação na internet. Idosos, mães e pais, por vezes acompanhados das crianças, compartilham a amargura do desemprego e a busca pelo almoço entre o que é rejeitado no lixo.
Dois dias depois que o vídeo veio à tona, o Diário do Nordeste foi até o local e encontrou várias famílias que esperavam a chegada do caminhão de lixo, que nesta quarta-feira (20) passou antes do esperado. Sandra se deparou, no entanto, com voluntários que distribuíam cestas básicas. Ela contou sobre o dia a dia de quem precisa tirar do lixo a sobrevivência.
“Eu tenho problemas nos pés de tanto trabalhar, mas não consigo operar, dói muito quando eu ando. Cortaram minha água, cortaram minha luz, está tudo derrotado. Derrotado não, porque a gente está com Deus e enquanto eu tiver fé a gente vai passando”, pondera a mulher que mesmo próxima da terceira idade ainda enfrenta incertezas quanto à sobrevivência da família.
O pouco dinheiro do orçamento da casa se tornou mais escasso sem os serviços como faxineira e lavadeira durante a pandemia da Covid-19. As filhas também enfrentam o desemprego. “Ficou mais difícil porque parou foi tudo, não tinha mais onde trabalhar, e aí a gente fica aqui na lixeira, porque eu não vou fazer coisa errada na minha vida”.
Dona Sandra mora na Comunidade dos Trilhos e começou a procurar alimentos nos supermercados no bairro Cocó, onde a estrutura das ruas e a circulação de veículos de luxo não parecem fazer parte da mesma Fortaleza. Por causa da movimentação de pessoas em situação de vulnerabilidade, algumas lojas não permitem mais o acesso às lixeiras. “A chance que a gente tem é nesse mercantil aqui. E se acabar?”, questiona.
“Eu levo as coisas para a gente comer quando chegar em casa. Agora, graças a Deus, meus netos estão indo para o colégio uma semana sim e outra não, numa crechezinha no Pio XII. Lá tem a alimentaçãozinha deles certa, eles passam o dia todo”- Sandra Holanda, avó desempregada.
As palavras de fé da senhora “de cabelos brancos e pele caída por causa do trabalho” expressam o desejo pelo fim da pandemia, o surgimento de empregos e a mudança da realidade vivenciada desde a criação dos filhos. “Eu quero que meus netos fiquem bem, estudem para crescer na vida e terem um trabalho bom e honesto”, compartilha. .
Família da rua
“Aquele foi o pior dia, muitas mães estavam chorando de fome, foi uma correria”, lembra Maria de Lourdes, de 43 anos, sobre o registro feito das pessoas revirando depósitos com restos de alimento. Ela e o esposo, Francisco Antônio, de 38 anos, dividem o trabalho com reciclagem – complemento da renda há cerca de 10 anos – e na espera pela comida disponível quando o caminhão do lixo passa.
Maria é diabética e os olhos vermelhos evidenciam a infecção tratada de forma inadequada apenas com o medicamento que recebeu quando foi ao hospital. “Eu agradeço muito o Auxílio (Emergencial), mas não dá para nada porque a gente paga aluguel, água e energia. O que são R$ 385? Nós vivemos nessa vida não porque a gente quer, mas por precisão mesmo”, frisa.
O casal também é acompanhado por uma dos quatro filhos de Maria, estudante do 2º ano do ensino médio. “Não dão nada pela gente porque estamos aqui, mas eu tenho cursos e telefone de pessoas que eu já cuidei, mas eu quero emprego para ganhar dinheiro com meu suor e ajudar quem está precisando”, diz Maria.
Francisco Antônio, desde que perdeu o trabalho como zelador durante a pandemia, sente gradativamente o sentimento de humilhação crescer nas ruas. “Daqui nós pegamos o nosso alimento e vamos para casa, se faltar vamos para a reciclagem e conseguimos uns R$ 30”, detalha a respeito do baixo lucro vindo com esforço excessivo.
Na traseira da bicicleta, Francisco compartilha o refrigerante e os salgados que conseguiu comprar e, por vezes, é o alimento até o meio dia. “Somos uma família, repartem alimentos com a gente e nós também trazemos, porque a gente também pensa no próximo. Se estamos num barco juntos, todo mundo tem que viver junto”, enfatiza Maria Lourdes sobre a relação com os companheiros feitos durante a coleta dos alimentos em tambores e caminhões de lixo.
Na correria por conseguir comida, a idosa Antônia Monteiro, de 64 anos, caiu e precisou até ser internada há quase dois meses com um problema cardíaco. “Vivo aqui batalhando, antes eu trabalhava lavando roupa, mas eu só comia desse jeito: o pessoal ajudando. Ficava nos tambores tentando e, nesse dia, eu passei mal”, lembra. Antônia vive com o benefício de R$ 150 do Bolsa Família e contribuição dos vizinhos. .
Sentimento de transformação em ação
No porta-malas do carro, a farmacêutica Renata Eleutério, de 38 anos, retira cestas básicas para doação, porque não se deve acostumar com cenas tão impactantes, como reflete. “Mais do que dar essa cesta básica, vamos fazer o cadastro das famílias para que essa ajuda não seja só dessa vez, mas que a gente possa acompanhá-los por alguns meses”, detalha.
Outros seis voluntários se organizam para dar suporte com alimentos e no processo de vacinação às pessoas reunidas na calçada do mercantil.
“Vamos tentar encontrar projetos de apoio e empregos, porque se você conversar cinco minutos com eles vai ver que é o que eles querem.”- Renata Eleutério, voluntária e farmacêutica.
O movimento começou a partir da comoção do grupo ao assistir o vídeo das pessoas que “estavam batendo à porta”, expressão usada como analogia por quem mora na mesma rua em que a cena foi registrada. “Rapidamente uma rede de pessoas começou a entrar em contato comigo, inclusive de outros estados, e eu fui organizando. Fizemos uma planilha, apareceram voluntários, para tentar alcançar essas pessoas”, explica.
Renata vê crianças e adolescentes acompanhando os pais e “como a gente caminha aqui fica impossível não enxergá-los”. “A pandemia agravou uma situação de vulnerabilidade muito alta, a gente já estava numa situação muito complicada, mas muitos perderam emprego. Espero que a gente possa auxiliar eles nesse caminho”. .
Ações sociais
A Secretaria Municipal da Saúde (SMS) realiza a busca ativa de pessoas em situação de rua por meio da parceria com instituições sociais, como informou a pasta por meio de nota. “Até a última terça-feira (19), deste público, 1.186 receberam a primeira dose, 483 receberam a segunda dose e 879 receberam dose única”, completa.
O Ônibus da Vacina é indicado pela SMS como estratégia para atender a população residente de locais vulneráveis no período de 14 de outubro a 9 de novembro.
A Secretaria dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS) informou que são fornecidas cerca de 100 mil refeições por mês para quem está em vulnerabilidade social. São ofertadas quentinhas e sopas, distribuídas em pontos em bairros como Centro, Parangaba, Bom Jardim e Mondubim. .