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Como a fome afeta a saúde física e mental no longo prazo

Kerry Wright não sentia fome. Não da maneira usual. Sua barriga resmungava, sim, ela constantemente a ouvia. Mas ela já não sentia os sinais óbvios da fome em seu corpo.

Ela estava em um “modo de fome”. Wright, mãe de três filhos em Aberdeen, chegou ao fundo do poço. Mas precisava cuidar de seus filhos, que entravam na adolescência.

Quando se deparou com o risco de seus próprios filhos terem privações, ela já não tinha mais contato com seus pais ou com o restante da família. Ela buscava um recomeço.

Só que, naquele momento, em 2013, isso parecia bem distante. Seu parceiro a tinha deixado e seus benefícios sociais estavam minguando. Ela conseguia trabalhos remunerados ocasionais, mas nunca ganhava o suficiente. Ela vasculhava as prateleiras com desespero, buscando sopa ou latas de feijão suficientes para, pelo menos, fazer o próximo almoço da família.

Como sempre havia muito pouco, não demorou para começar a pular refeições. Os efeitos logo se materializaram. Ela ficava cansada o tempo todo, mas não conseguia dormir. Ela sentia fome, mas não comia e, se o fizesse, às vezes ficava doente. Era difícil manter o raciocínio.

Wright estava exausta, mas desesperada para esconder dos filhos a dimensão de seu cansaço. Por isso, andava pela casa se apoiando na mobília para manter-se firme. Ela finalmente descobriu que uma deficiência severa de ferro era responsável pela terrível fadiga que também a deixava tonta.

Mas não era seu bem-estar que a preocupava, e sim o de seus filhos. Por mais que tentasse, ela não conseguia esconder que não estava bem. Eles faziam perguntas: por que estava tonta o tempo todo? Por que tomava pílulas de remédio?

Um dia, ela chegou em casa e encontrou um copo de leite na mesa. Seu filho, preocupado com ela, encheu o copo e a fez beber enquanto assistia para ter certeza de que ela tomava tudo.

“Não deveria ser assim”, afirmou. “As crianças não devem se preocupar com os pais assim.”
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Saúde mental abalada

Hoje, sua maior preocupação não é que sua saúde física tenha sofrido, mas sim a saúde mental de seus filhos. Que cicatrizes psicológicas foram deixadas ao ver a mãe passar fome?

O que aconteceu com Wright e sua família é mais comum em lares de países ricos do que se imagina. A insegurança alimentar, também conhecida como pobreza alimentar, está aumentando no Reino Unido, o nono país mais rico do mundo.

A extensão exata é desconhecida. Mas muitos outros países estão enfrentando esse problema. Há milhões de famílias na Europa, nos EUA e no Canadá, por exemplo, que sofrem com a insegurança alimentar.

Os bancos de alimentos, que distribuem refeições gratuitamente para os pobres, estão cada vez mais necessários. A Trussell Trust, que administra esses bancos no Reino Unido, registrou um aumento de 19% entre 2017 e 2018 no número de cestas básicas distribuídas no Reino Unido – um total de 1,6 milhão.

Mas até mesmo grupos como o Trussell Trust concordam que esses bancos não podem ser uma solução de longo prazo.

Os alimentos fornecidos variam em quantidade e qualidade – e muitas vezes são limitados nutricionalmente. Uma reforma do sistema, dizem organizações de caridade, é necessária para impedir que as famílias caiam na armadilha da fome.

Os cientistas mostraram que a fome não é algo apenas transitório. A fome durante a infância pode ter um efeito cascata o qual estamos apenas começando a entender. As consequências físicas e psicológicas de longo prazo da fome são sérias e têm implicações para a saúde da sociedade.

A insegurança alimentar pode ser uma bomba-relógio para as gerações famintas de hoje – o quão perigoso é isso?

oi uma pessoa de uma instituição de caridade que mencionou o termo “banco de alimentos” para Wright pela primeira vez. Mas ela se esquivou da ideia. “De jeito nenhum”, pensou.

Ficava apavorada de imaginar que, se buscasse ajuda, os serviços sociais tomariam seus filhos. A reação foi um reflexo de sua infância. Seus pais desconfiavam das agências de ajuda externa e orientavam a seus filhos que, se alguém fosse à casa deles, que “fechassem a boca”.

Até que Wright teve uma ideia. Ela se candidataria para se tornar voluntária no banco de alimentos. “Parecia um pouco melhor, mais como uma troca”, comenta. Como voluntária, ela poderia ter apoio e um pouco de comida. Valeu a pena.

Durante os primeiros dias, ela se sentiu estranha e deslocada. Mas logo uma das trabalhadoras, Kelly Donaldson, a acolheu. Ela entendeu o que Wright passava e separava um pequeno pacote de comida para sua nova amiga levar no final do dia. “Esse é o seu jantar de hoje à noite”, ela dizia a Wright, entregando a sacola.

Esse banco de alimentos era o único no centro de Aberdeen administrado pelas Iniciativas Alimentares Comunitárias do Nordeste – conhecido como CFine. Além de administrar o banco de alimentos, a CFine ministra cursos de culinária e oferece frutas e legumes a preços subsidiados.

Foi na sede da CFine que conheci Wright pessoalmente. Cheguei numa quarta-feira movimentada. Os ajudantes reuniam itens específicos enquanto uma pequena fila se formava para coletar as cestas básicas.

Em sacolas brancas, são colocados pacotes de leite, latas de comida, cereais, arroz ou macarrão e molho. Em cerca de 20 minutos, duas fileiras de sacos empilhados desaparecem. Não demora muito até que sejam reabastecidos. Há algumas semanas, a CFine distribuiu 179 dessas sacolas em um único dia, o recorde da instituição.

A confiança nos bancos de alimentos em Aberdeen é alta. Há 20 desses serviços na cidade – mais do que em qualquer outra cidade da Escócia, incluindo as mais populosas Glasgow e Edimburgo. Os bancos de alimentos estão se tornando mais comuns em muitos lugares – por exemplo, em comunidades rurais dos EUA, em cidades canadenses e em países europeus ricos. A Escócia não é de forma alguma uma exceção.

Antes de termos a chance de nos encontrar, vejo Wright correndo rumo a uma sala de entrevistas para aconselhar uma jovem. Ele tem cabelos longos e calças camufladas. Seu cachorro veio junto. Wright agora faz parte da equipe de apoio financeiro.

É seu trabalho ajudar as pessoas a gerenciar suas finanças. O papel inclui ajudá-las com aplicações de benefícios sociais – exatamente o tipo de coisa que ela teve de aprender por si própria, a fim de manter sua família alimentada.

Wright me diz que ainda se preocupa com o que seus filhos passaram. “A saúde de meus filhos não foi comprometida no sentido físico, mas eu diria em termos de bem estar mental, absolutamente”, explica ela. “Eles estavam preocupados com a mãe deles. Eles estavam ansiosos de ir à escola porque não tinham certeza do que estava acontecendo com a minha saúde.”
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Crianças famintas

Há sinais de que cada vez mais crianças nos países ricos estejam passando fome. Em novembro de 2018, um relator especial das Nações Unidas sobre pobreza extrema e direitos humanos criticou o governo britânico pelas cenas de pobreza que testemunhou em uma viagem ao Reino Unido.

A extensão da pobreza infantil era, segundo Philip Alston, “não apenas uma vergonha, mas uma calamidade social e um desastre econômico, tudo ao mesmo tempo”.

A situação não é melhor do outro lado do Atlântico. Nos EUA, uma em cada cinco crianças passa fome na escola. O Canadá teve sua própria visita de um relator especial da ONU em 2012, que também identificou a insegurança alimentar como um problema crescente.

Onde quer que a fome esteja aumentando, as implicações são ruins. A Faculdade Real de Pediatria e Saúde Infantil e o Trussell Trust estão entre os preocupados sobre como a insegurança alimentar pode afetar a saúde das crianças. O que, especificamente, seriam esses efeitos?

Em uma ligação para Valerie Tarasuk, da Universidade de Toronto, menciono a experiência de Kerry Wright e suas preocupações com o bem-estar mental de seus filhos.

“A mulher é obviamente muito perspicaz”, responde Tarasuk. “É exatamente com isso que precisamos nos preocupar em relação a essas crianças.”

Tarasuk é professora de ciências nutricionais e especialista na relação entre insegurança alimentar e saúde. Ela e seus colegas analisaram dados nacionais sobre dezenas de milhares de canadenses para mostrar que quanto mais severa a experiência de insegurança alimentar de uma pessoa, maior a probabilidade de buscar ajuda nos serviços de saúde. Mas ela também rastreia pesquisas que exploram os efeitos de longo prazo sobre as crianças que vivem em lares com dificuldade de alimentação.

Estudos realizados por uma equipe da Universidade de Calgary, incluindo Sharon Kirkpatrick e Lynn McIntyre, mostraram que passar fome, mesmo que só às vezes, está associado à piora da saúde física e mental. Isso também significa que as crianças têm menos probabilidade de terminar a escola.

Em um estudo de seis anos, McIntyre e seus colegas descobriram que os jovens que haviam passado fome tinham um risco significativamente maior de desenvolver sintomas depressivos. E outra grande análise mostrou que as crianças famintas têm o mesmo risco de desenvolver algum tipo de problema de saúde nos dez anos seguintes. A fome, escreveram os pesquisadores, teve um efeito “tóxico”.

“As maiores chances de condições crônicas e de asma foram observadas entre os jovens que experimentaram múltiplos episódios de fome em comparação com aqueles que nunca passaram fome”.

Um grande esforço de pesquisa liderado pelo King’s College London está em andamento em dois grandes bairros no sul da capital, Lambeth e Southwark. É liderado por Ingrid Wolfe, que também é consultora pediátrica. Ela diz que parte da motivação foi ver mais crianças internadas com convulsões causadas por deficiências de vitaminas. “Desnutrição muito, muito aguda”, descreve.
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Esforço coletivo

A Parceria para a Saúde de Crianças e Jovens (CYPHP, na sigla em inglês) é o esforço de Wolfe e seus colegas para estudar o contexto biopsicossocial de jovens que usam os serviços de saúde. Em outras palavras, é uma tentativa de entender o que acontece na vida de um jovem que pode ter influenciado a condição que o leva ao médico.

Wolfe diz que os participantes preenchem um questionário online detalhado sobre sua vida em casa. As perguntas incluem itens sobre a estabilidade do ambiente doméstico, comida e vida social dos jovens.

Existem indícios de que a insegurança alimentar seja um fator maior na saúde dos jovens do que se imaginava. Entre os participantes com constipação, por exemplo, a insegurança alimentar acabou sendo um fator relevante em 90% dos casos.

Em última análise, o CYPHP busca melhorar a saúde das crianças descobrindo quais fatores podem afetar seu bem estar – em vez de esperar que as crianças cheguem a precisar de tratamento médico.

Segundo relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) de 2017, a fome cresceu em várias partes do mundo. Após anos de melhora nos índices, o combate à fome no Brasil estagnou. O país abriga 5,2 milhões de pessoas que sofrem de subnutrição, ou seja, 2,5% da população.
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Saúde e nutrição

Quem vê regularmente os efeitos da fome nas crianças é Ronny Cheung, consultor pediátrico geral em Londres. Ele me enviou dados mostrando como, nos últimos 20 anos, a Inglaterra tem visto um aumento perceptível nos casos de raquitismo que exigiram hospitalização. Atualmente, há mais hospitalizações infantis por raquitismo do que em qualquer outra época nas últimas cinco décadas.

O raquitismo não necessariamente está ligado apenas à dieta, porque a deficiência de vitamina D também pode ser causada pela falta de luz solar. No entanto, o “raquitismo nutricional” é diagnosticável quando fica claro que a ingestão de alimentos pela criança tem sido baixa.

Em um pequeno escritório em um hospital no centro de Londres, Cheung relembra o caso de um paciente de 18 meses. A mãe o levou ao médico porque ele não aprendia a andar. Um exame detalhado mostrou a razão. Suas pernas estava severamente arqueadas, sintoma característico do raquitismo. O menino também desenvolvera nódulos ósseos nas extremidades de suas costelas, conhecidos como um rosário raquítico.

“Isso é muito raro”, diz Cheung. “É como coisas de livros didáticos que ninguém vê, e esse garoto teve os sintomas porque a deficiência era muito severa.”

Depois de conversar com a mãe do menino sobre sua dieta, ficou claro que esse era um caso de raquitismo nutricional. Depois de um série de suplementos seguido por um plano de dieta melhorado, o raquitismo do garoto se reverteu. Em uma idade tão nova, os ossos da criança ainda podem se corrigir – desde que o corpo comece a receber os nutrientes corretos.

Para Cheung não devemos enxergar esses casos como anomalias. “Quando vemos picos de doenças raras, isso nos diz que há uma questão subjacente à qual não estamos testando ou que não conhecemos. É um sinal.”

Sabemos que a má nutrição pode afetar a saúde das crianças. Mas o que realmente acontece no corpo? Além dos baixos níveis de vitamina D, o que mais pode ser diferente sobre a ingestão de nutrientes de uma criança desnutrida?
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Lutando com a balança

Em uma casa onde os pais ou responsáveis dependem de alimentos mais baratos, o consumo de produtos açucarados e gordurosos tende a aumentar. As dietas podem se tornar menos equilibradas e, assim, a ingestão de micronutrientes diminuirá.

Entre as primeiras deficiências a emergir está a de ferro – como no caso de Kerry Wright -, vitamina A e iodo. Esse último, abundante em peixe branco e produtos lácteos, é muito importante para o desenvolvimento do cérebro.

A Associação Médica Britânica diz que a deficiência de iodo é “a principal causa de retardo mental e dano cerebral evitáveis, tendo impacto devastador no cérebro do feto em desenvolvimento e das crianças pequenas nos primeiros anos de vida”.

E não nos esqueçamos da obesidade. As pessoas às vezes ouvem a palavra “desnutrição” e pensam que isso significa falta de comida, tornando a pessoa pálida e magra. Na realidade, enquanto a subnutrição é uma forma de desnutrição, a obesidade é outra. É apenas o outro extremo da escala.
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Transformando vidas

Para Kerry Wright, foi trabalhar para uma instituição de caridade que realmente a colocou de pé, e não o acesso à comida de graça. Hoje, ela expressa um verdadeiro zelo pelo trabalho de 29 horas semanais. Ela finalmente tem um fluxo constante de renda. Este ano, ficará livre de dívidas pela primeira vez em muito tempo.

A saúde física de seus filhos está boa. Eles se tornaram mais ativos. Agora praticam esportes e um vai para uma academia militar.

Ao conhecê-la na CFine, tenho a sensação de que Wright, assim como sua amiga Kelly Donaldson, encontrou uma função que a ajuda no curto e no longo prazos. “Eu tenho lealdade a este lugar”, diz ela. “Porque eles estão genuinamente ajudando as pessoas a transformar suas condições. Isso afeta a saúde física, a saúde mental e as situações da vida.”

Donaldson mostra como Wright está claramente mais feliz agora. Ela se levanta todos os dias. Coloca maquiagem. Vai trabalhar. Isso faz uma enorme diferença para toda a família.

“Faz”, diz Wright. “Tem um impacto sobre meus filhos”.

Por: Chris Baraniuk
Fonte: BBC Future