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Avanço da pobreza na pandemia compromete saúde mental: ‘posso morrer com uma bala ou de fome’

Más condições de moradia, desemprego, violência, falta de dinheiro, vulnerabilidades. Como manter-se sadio mentalmente diante de condições tão adversas? Se a vida de quem padece com a miséria e as desigualdades já era complicada, na pandemia de Covid-19, foi drasticamente mais afetada.

No Dia Internacional da Saúde Mental, o Diário do Nordeste discute a relação entre vulnerabilidade social e o sofrimento psíquico, na realidade cearense, na qual 3,1 milhões de pessoas, segundo registros do Cadastro Único, mecanismo do Governo Federal, ainda sobrevivem com renda de até R$ 89,00 por mês.

No Estado, até junho de 2021, conforme os dados mais atualizados disponíveis pelo Ministério da Cidadania, 5,1 milhões de residentes do Ceará estavam em situação de pobreza e extrema pobreza, inseridos em famílias cuja renda varia de meio salário mínimo por pessoa até 3 salários mínimos de renda mensal total.
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Nesse cenário, as faltas são constantes e ter o básico é uma permanente dificuldade, e em paralelo, a manutenção da saúde mental sofre influências de ordem biológica, cultural e também social. A fotógrafa Raquel Vieira, de 21 anos, viu sua carreira sair de um momento de ascensão para uma rotina de incertezas em março de 2020. “Eu precisava da minha profissão e da minha arte para sobreviver e, com a pandemia, tudo ficou muito caro e os trabalhos sumiram”, resume.

Mesmo com o auxílio emergencial as contas de casa, onde morava com a mãe, começaram a se acumular. “Eu pegava qualquer tipo de bico para conseguir dinheiro, mas no meu bairro tinham tiroteios e brigas de gangue, eu não poderia sair ou voltar para casa. Em um momento, eu tive que ir trabalhar – já tinha marcado e eu precisava do dinheiro – pensei: ou eu saio de casa e posso morrer com uma bala ou eu fico aqui e posso morrer de fome”.

“Todas as noites, quando eu tinha de voltar para casa, ficava muito ansiosa. O meu medo era morrer por uma bala perdida e não ter ninguém por perto para avisar minha mãe que eu não ia chegar em casa”- RAQUEL VIEIRA, Fotógrafa

Raquel teve de segurar o somatório da quebra das expectativas profissionais, o fim de relacionamentos e a crise financeira, que culminaram em fragilizar a saúde mental. “Eu cheguei a entrar em depressão, porque eu sentia falta da galera, de ter um trabalho, de ver meus parentes e amigos. De viver, não sobreviver, mas viver”, lembra. A jovem buscou ajuda psicológica, mas não teve melhora com a abordagem adotada pelo profissional.

Paralelo a isso, foi acolhida por atividades artísticas como balé, maracatu e no grupo Jovens Agentes de Paz (JAP), com atuação no Grande Bom Jardim. “Comecei a andar mais com meus amigos, entrei para projetos sociais e comecei a escrever poesias. Ganhei uma proposta de primeira experiência como produtora”, destaca.

As vivências da jovem evidenciaram como a vulnerabilidade social intensificou o impacto negativo das adversidades anteriores à pandemia: machismo, assédio e a pressão de ser mulher na periferia, como lista Raquel. “Eu não sou grata pela pandemia, mas eu me tornei mais forte, vi que eu pude lutar mesmo com o psicológico abalado”, conclui.
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CRISES FAMILIARES

Em meio ao aumento do desemprego e do custo da alimentação, há maior número de pessoas com fome, em situação de insegurança e desespero. A percepção é do padre Rino, também médico psiquiatra, e dedicado à promoção da saúde mental em projetos espalhados pela cidade. “Se calcula que, no Ceará, quadruplicou o número de pessoas que manifestaram sintomas psiquiátricos. Dos mais simples, como ansiedade e insonia, àqueles médios como sintomas depressivos até aos mais graves como auto agressão e o suicídio”.

Casas de famílias em situação de vulnerabilidade social são mostras do cenário desolador observado na pandemia, como observa o padre. “Aumentou o uso de drogas lícitas e ilícitas, de famílias desestruturadas por causa da precariedade e isso também gera problemas de saúde mental. Quanto mais uma pessoa fica isolada, abandonada e sem perspectiva, obviamente adoece”, conclui.

Os projetos na periferia de Fortaleza, como o Grande Bom Jardim, utilizam a abordagem sistêmica comunitária e a formação profissional dos beneficiários. “É importante garantir que o espaço seja de acolhimento e ter o cuidado para que a pessoa possa transformar aquela crise em uma oportunidade de mudança”, destaca o padre.

A fome e o desamparo se impõem e deixam a busca por ajuda relacionada à saúde mental em um plano distante para quem não tem condições financeiras para o sustento. “A palavra-chave é prevenção: temos que ajudar a população a tomar consciência que a pandemia traz um estresse adicional pelo medo da morte e a diminuição de oportunidades”, descreve.

“Então, é preciso fazer atividades físicas, fortalecer os vínculos com as pessoas que nos fazem bem, porque nutrir admiração aos amigos também é muito importante para manter a saúde mental”, propõe como alternativas de fortalecimento conjunto.
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Por: Thatiany Nascimento e Lucas Falconery
Fonte: Diário do Nordeste