Nesse processo de reorganização das forças da sociedade civil e retomada da participação popular, tem início, no fim do governo Collor, o Movimento pela Ética na Política, com ampla representação nacional.
Em seguida ao impeachment, em uma reunião realizada no Fórum de Ciência e Cultura para debater os rumos do movimento, Dom Luciano Mendes de Almeida, da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), e Betinho levantam a questão de que não há nada mais aético no País do que a fome, identificando no combate à pobreza o único projeto que poderia sensibilizar e unir toda a sociedade brasileira.
A proposta é consensual: reencaminhar as forças organizadas que lutaram pelo impeachment para a discussão da fome e da miséria, mantendo a organização nacional descentralizada com Betinho surgindo como um grande mobilizador.
Do Movimento pela Ética na Política surge a Ação da Cidadania, instalando-se no País o maior movimento autônomo e descentralizado da história da sociedade brasileira.
Quem podia fazer alguma coisa reunia mais algumas pessoas e criava um comitê, sem comando, sem hierarquia – um mutirão da democracia, resultante da responsabilidade e do compromisso de cada um. O movimento crescia em uma dimensão incalculável. Betinho, com sua liderança natural, seduzia e emocionava as pessoas.
Itamar Franco assume o governo, tendo Betinho como interlocutor no encaminhamento de todos os desdobramentos da Ação da Cidadania e, em maio de 1993, é criado, fruto dessa mobilização, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), sob a coordenação de Dom Mauro Morelli, Bispo de Duque de Caxias-RJ.
Em março de 1993, em meio a essa grande articulação que fervilhava emtodos os mais distantes pontos do País, Pinguelli e eu fomos até a casa do Betinho com a proposta de discutirmos iniciativas que fortalecessem uma nova alternativa: a transformação do estatal em público. Desenvolveu-se a idéia de criar um comitê reunindo as grandes empresas estatais para discutir caminhos que afirmassem a responsabilidade social dessas entidades. Dos encontros no Fórum participavam, entre outras empresas da área de energia, Furnas, Petrobras, Light e Cemig. Era preciso ampliar esse leque e deflagrar um processo de discussão com outros setores. As maiores estatais do País foram convidadas para uma reunião no Fórum. A pauta: avaliar e debater o que as entidades públicas poderiam fazer em relação a grande mobilização de combate à fome e à miséria que estava acontecendo na sociedade e no governo.
Betinho comentava, com espanto, que o mais curioso era o fato de o convite, encaminhado às empresas governamentais, por ele e pelo Pinguelli, duas pessoas sem cargos no governo, ter tido uma resposta impressionante. Ficamos surpresos com a presença de presidentes e diretores de praticamente todas as empresas convidadas. O resultado da ousadia mostrava que algo de novo estava acontecendo no Brasil.
Betinho fez uma belíssima apresentação, desenhando de maneira muito sensível o quadro da fome no Brasil e a necessidade absoluta de aquelas empresas, agentes do setor público, não ficarem indiferentes. “Estatal não é governamental”, disse Betinho. “Ela tem um capital público e precisa ter um processo decisório público. O defeito da nossa democracia é fazer com que as empresas estatais sejam empresas do governo”.
A questão da fome, da solidariedade social, envolve uma grande mudança nos procedimentos e nas práticas gerenciais dessas empresas e até no âmbito de suas próprias missões. Quando falamos em ações inovadoras, estamos falando de idéias que já estão aí. É simplesmente um outro olhar, com propostas que não só beneficiam as pessoas como em muitos casos trazem uma receita maior para as empresas.
Deve ser responsabilidade social das entidades: dar uso integral a seus recursos, evitando desperdícios e tranformando ociosidades eventuais e temporárias em benefícios; incentivar o encontro do mundo organizado das entidades com o mundo desorganizado da pobreza como forma de estabelecer um compromisso maior com as comunidades onde atuam e de apostar na construção da cidadania, que não existe enquanto um privilégio de alguns , e sim como o único caminho que nos levará à democracia de fato; estabelecer relação de co-responsabilidade no combate à miséria, possibilitando e incentivando o desenvolvimento humano sustentável e a introdução de alternativas de geração de trabalho e renda como indutores da organização das comunidades e do resgate da auto-estima dos excluídos.
Mais do que posturas generosas ou de assistencialismo, apontávamos a via de mão dupla: investir na comunidade que virá a ser consumidora de seus produtos ou serviços. Estávamos, de certa maneira, falando de negócios e de ação empresarial.
Nesse contexto, propondo para o setor público uma mudança de cultura, nasce o Comitê de Entidades Públicas no Combate à Fome e pela Vida – Coep, um espaço de articulação que se constrói a partir de parcerias, sem subordinação e em uma estrutura descentralizada. Estavam frente a frente empresas e entidades que nunca haviam estado juntas antes.
Em agosto de 1993 reuniram-se 33 dirigentes de empresas, federais e estaduais, fundações e autarquias, para formalizar a criação do Coep. Betinho falou que aquele era um momento histórico. Pela primeira vez no Brasil tantas entidades, que antes nunca haviam se sentado à mesma mesa, se reuniam para somar forças para combater a fome e a indiferença “… quando pensamos no Coep, tantas empresas e entidades da maior importância desse País e somamos todo seu potencial humano, tecnológico, econômico, eu estou convencido de que se elas se orientassem todas no sentido da erradicação da miséria, em cinco, dez anos, nós seriamos um outro País. Ou então elas não valem nada, e nós sabemos que elas valem”.