NASA, Astronautas e coronavírus: um guia para o isolamento social

Atualizado em 24/8/2020

Por que falar de estrelas?

Nenhuma outra instituição na Terra ou fora dela sabe tanto sobre isolamento social como a NASA, a Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço dos Estados Unidos. Ao longo das últimas décadas, a NASA enviou mais de 800 astronautas para o espaço em mais de 100 missões diferentes, com estadias curtas, como em voos orbitais, até estadias extremamente longas, como vários meses a bordo da Estação Espacial Internacional (ISS).

Para integrar uma equipe de astronautas, o interessado deve ser aprovado em seleção extremamente rigorosa, porém não há Superman ou Mulher Maravilha prontos para o desafio; as capacidades especiais são criadas através de treinamento. A agência lista os cinco grandes perigos para a exploração espacial: 1. Radiação 2. Isolamento e confinamento 3. Distância da Terra 4. Falta de gravidade 5. Ambientes hostis.

Principalmente através dos relatos de Bill Paloski, Ph.D. e Diretor do Human Research Program (Programa de Pesquisa Humano, ou HRP) da NASA, e de Tom Williams, cientista de Human Factors and Behavioral Performance Element (HFBP), também da NASA, temos uma visão aprofundada sobre um dos grandes perigos: isolamento e confinamento.

Durante a pandemia mundial de coronavírus, no cenário onde o Brasil ainda não conseguiu achatar a curva de contágio, todos aqueles que podem ficar em casa devem ficar em casa. Com os ensinamentos dos astronautas, ficar em casa pode se tornar suportável e até recompensador.
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Especialidade do espaço – isolamento, solidão e confinamento

A NASA costuma dividir o isolamento em três áreas interligadas, mas capazes de receber análise separadamente: 1. Desconexão social 2. Habilidade de autorregulação 3. Estado mental de longo prazo. Conheça abaixo cada uma dessas esferas.

Desconexão social é a esfera óbvia do isolamento gerada por estar longe de pessoas. Desde a infância e ao longo de toda a vida, a maioria da população vive cercada por outras pessoas queridas, sejam familiares ou amigos. Apenas poucas profissões necessitam isolamento, como os astronautas já mencionados ou tripulações de submarinos. Com a chegada do coronavírus, ocorreu uma ruptura abrupta do convívio social no mundo inteiro.

A habilidade de autorregulação se torna desafiadora quando a rotina vira “um ciclo infinito de dias iguais”, pois normalmente nossa rotina ocorre em resposta aos horários e demandas do meio. O almoço no intervalo das 12h15 com os colegas, reunião da Liga Acadêmica duas vezes por semana, encontro com professor para ver se aquele projeto sai do papel, etc. No mundo pré-pandemia existia equilíbrio relativo entre as atividades fixas e as demandas que surgiam espontaneamente ao longo do dia e precisavam ser resolvidas.

Estado mental de longo prazo considera a construção do estado mental baseada em interações de sucesso com o nosso ambiente; alcançando metas, desde as grandes, como ser aprovado na faculdade dos sonhos, até as pequenas, como cortar a grama do quintal.

O ambiente isolado acaba se tornando monótono, há menos oportunidades de se sentir desafiado e, consequentemente, de sentir que venceu os desafios. Astronautas normalmente são pessoas acostumadas a realizar coisas significantes e podem ficar desorientados com a monotonia.

Quando recebem metas do Controle da Missão, em Houston, elas certamente são significantes, como uma caminhada espacial ou supervisionar um projeto científico importante, mas, apesar de gratificantes, essas grandes metas são espaçadas e ocupam apenas uma pequena parte do tempo no dia a dia deles.
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A mente do viajante espacial e a sua mente funcionam igual

Em experimentos de privação social e de privação sensorial realizados na década de sessenta, em preparação para o homem pisar na Lua com a Apollo 11, comprovou-se uma premissa simples: a mente quer estar engajada em algo.

Quando algo assim não existe no mundo real, quando não provemos estímulos suficientes através das coisas que fazemos, ela recorre à ferramenta da imaginação. Algo que pode seguir um caminho positivo ou não, podendo levar ao ponto de alucinações.

É importante buscar tarefas que te desafiem e façam sentido, tenham propósito na sua vida. Por exemplo, Shannon Lucid, bioquímica e astronauta de cinco missões da NASA, levou diversos livros em sua bagagem para que pudesse preencher seu tempo livre com leitura e para, mesmo do espaço, ler aos seus filhos durante as chamadas de comunicação semanal que tinha com a família. O hábito de ler para os filhos, além de simplesmente conversar, era uma âncora capaz de mantê-la conectada ao mundo real.
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Melhores medidas

As equipes da NASA do Programa de Pesquisa Humano desenvolveram um acrônimo com os elementos vitais para manter a saúde mental em isolamento e confinamento. Um trocadilho com a palavra conectar, C-O-N-N-E-C-T é literalmente a melhor receita enquanto o COVID-19 perdurar.

Community (Comunidade): Pense em como você pode contribuir para o bem maior. Um viajante espacial faz algo por toda humanidade. Você pode fazer algo por outras pessoas! Seja fazer doações se sua condição financeira permite, fazer as compras no comércio local, conscientizar sua comunidade sobre a importância de não “furar a quarentena”, organizar campanhas de arrecadação de alimentos, etc.

Openness (Mente aberta): Encare a realidade da situação e adapte sua vida onde for preciso. Sem mistério, é buscar enxergar as coisas como elas são.
Networking (Relacionar-se): Assim como os astronautas interagem entre si e com suas famílias através de vídeochamada, você pode fazer o mesmo.

Se está passando o isolamento na casa da sua família, a convivência com eles é oportunidade para conhecê-los melhor e estreitar relações; se está morando sozinho, você também pode estreitar relações através do telefone ou vídeochamada com família e amigos.

Needs (Necessidades): Apesar do grande desafio ser psicológico, não esqueça que você é um corpo biológico. Cuide bem das suas necessidades de sono, alimentação com qualidade nutricional e atividade física. A agência analisa constantemente a maneira que os tripulantes da Estação Espacial Internacional comem e dormem, pois a falta de certas vitaminas ou excesso de espécies reativas de oxigênio por privação de sono podem levar a estados mentais negativos; além disso, a agência insere a maior quantidade possível de atividade física dentro das limitações de gravidade.

Expeditionary Mind (Mente Expedicionária ou Aventureira): Cedo ou tarde, vamos sair dessa pandemia. Você também vai sair dela e voltar à “vida normal”. Quando a vida normal recomeçar, você quer estar igual como era antes ou ter se tornado uma pessoa melhor? Enfrente os desafios, especialmente aqueles que você varria para debaixo do tapete por falta de tempo.

Countermeasures (Contramedidas): Seja franco consigo sobre seus pontos fortes e suas preocupações. Aproveite para agir numa adversidade logo que você a identificar. Atividade física, qualidade de sono e manter um diário podem ser especialmente úteis nesse sentido. Desde as primeiras missões tripuladas até hoje, a NASA incentiva manter um “astronaut journal”, o famoso diário, não apenas com detalhes técnicos da missão, mas falando também sobre os sentimentos do tripulante. O ato de precisar organizar o raciocínio para escrever sentenças e frases pode oferecer clareza mental num nível que apenas pensar não entregaria.

Training (Treinamento): Busque melhorar naquilo que você já faz ou aprender habilidades novas. Novamente, o estado de exceção que vivemos um dia acabará e voltaremos ao normal, portanto trabalhe pela pessoa que você quer ser.

Uma mudança notada pela NASA nesses viajantes espaciais, quando retornam à superfície do planeta, é a visão mais universal. Geralmente vemos a Terra como o caos do qual participamos todos os dias, ficando difícil ter uma consciência coletiva enquanto espécie, enquanto conjunto.

As equipes de astronautas, logo após chegarem, experimentam esse sentimento universal porque tiveram a oportunidade de ver a Terra de fora, se retirar dela por um tempo e perceber que todos somos essencialmente humanos. É um excelente momento para refletir sobre amarras de preconceito, ódio e discriminação; para deixá-las no passado de uma vez por todas.

Os pensamentos em isolamento são sinérgicos entre si, alcançando efeito cumulativo. Portanto, é importante fazer esforço para iniciar um ciclo virtuoso (ao invés do ciclo vicioso) e aderir às atividades mencionadas para reforçar os comportamentos positivos. Igual à canção Starman do David Bowie, todos nós gostaríamos de nos encontrar, mas por hora é melhor apenas fazer contato.
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Abraço e até a próxima,
Guilherme Socoowski das Neves
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Fonte: Sanar Medicina