Por que algumas crianças com covid-19 desenvolvem graves inflamações

Atualizado em 16/6/2020

Os casos confirmados de covid-19 em crianças e adolescentes variam entre 0,5% e cerca de 3,5% do total de pessoas acometidas pela doença em diferentes partes do planeta. Essa faixa etária é, de longe, a menos afetada pela pandemia. Ainda assim, um pequeno número de meninos e meninas vem apresentando problemas sérios de saúde que têm sido relacionados à infecção pelo vírus Sars-CoV-2.

Essas graves e inesperadas manifestações clínicas, consequência de uma intensa resposta inflamatória nos vasos sanguíneos e em diversos órgãos, como o sistema respiratório, cardiovascular e gastrointestinal, somam-se a várias questões ainda sem resposta sobre as particularidades exibidas pela pandemia na parcela da população com até 20 anos de idade, como o seu aparente menor risco de infecção e de desenvolver formas graves de covid-19 e o seu papel na disseminação do novo coronavírus.

Casos no mundo todo

Recentemente, médicos no Reino Unido, na Itália e nos Estados Unidos relataram a ocorrência de uma síndrome inflamatória pediátrica muito provavelmente associada à pandemia do novo coronavírus. No dia 19 de maio, a SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria), em conjunto com o Ministério da Saúde, a Sociedade Brasileira de Reumatologia e a Opas (Organização Pan-Americana da Saúde), emitiu uma nota de alerta sobre essa condição aguda e grave, potencialmente fatal. Segundo os médicos, ela parece ser uma resposta tardia à infecção pelo vírus.

“Já tivemos também casos assim no Brasil”, diz o pediatra Marco Aurélio Palazzi Sáfadi, da FCM-SCSP (Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo) e coordenador do Serviço de Infectologia Pediátrica do Hospital Infantil Sabará, um dos autores da nota da SBP.

“Não temos dados oficiais, mas recebo relatos de colegas de São Paulo e de outros estados que acompanham casos de crianças infectadas pelo Sars-CoV-2 com essa síndrome. Ela se parece com o quadro da chamada doença de Kawasaki. Mas em algumas crianças, além dos sintomas dessa síndrome, há ainda intensa reação inflamatória e choque.”

Relativamente rara, a doença de Kawasaki é uma vasculite (inflamação da parede dos vasos sanguíneos) sistêmica de causa desconhecida. Foi descrita em 1967 pelo pediatra japonês Tomisaku Kawasaki. É mais frequente em quem tem até 5 anos e apresenta incidência elevada na Coreia do Norte e no Japão, onde chegam a ocorrer anualmente mais de 100 casos por 100 mil crianças.

Como não há um teste específico para confirmar a doença, o diagnóstico é feito com base em critérios clínicos e laboratoriais, nos quais se observam sintomas como febre persistente, conjuntivite, exantema, edema de língua e de lábios e vermelhidão na palma das mãos ou na sola dos pés. A doença é curável, mas se não for tratada adequadamente pode levar à morte. A principal complicação é a ocorrência de aneurismas na artéria coronária. No Brasil, os dados epidemiológicos são escassos, pois não se trata de doença de notificação compulsória.

Alerta britânico

Com a pandemia do novo coronavírus, o primeiro alerta sobre os casos de crianças com uma síndrome multissistêmica similar à doença de Kawasaki foi disparado por pediatras britânicos no fim de abril. Quase uma dezena de pacientes com idades que variavam de 4 a 17 anos apresentava um quadro de inflamação sistêmica, com febre alta e persistente, dores abdominais e sintomas gastrointestinais (vômito e diarreia), além de inflamação cardíaca. Alguns testavam positivo para Covid-19; outros não. Na ocasião, a associação com o vírus Sars-CoV-2 não pôde ser estabelecida de forma inequívoca.

Casos parecidos começaram a ser registrados em outros países. Até 12 de maio, o Departamento de Saúde do Estado de Nova York, nos Estados Unidos, havia identificado 102 pacientes com sintomas semelhantes, alguns deles com detecção do RNA viral por exames de RT-PCR e a maioria com sorologia positiva, sugerindo tratar-se de uma manifestação tardia da infecção pelo Sars-CoV-2. Os exames de RT-PCR e sorológico indicam, respectivamente, que a pessoa está ou esteve infectada pelo vírus.

Médicos do Departamento de Pediatria do Hospital Papa Giovanni XXIII, na cidade italiana de Bérgamo, primeiro epicentro europeu da pandemia, publicaram em 13 de maio um artigo na revista The Lancet em que descrevem 10 aparentes casos da doença, sete em meninos e três em meninas. As crianças haviam sido internadas apresentando uma doença similar à de Kawasaki entre 18 de fevereiro e 20 de abril. Os autores notaram que, no período, houve um aumento de 30 vezes no número de casos de Kawasaki reportados ali em relação aos cinco anos anteriores.

Antes da epidemia, o hospital tratava cerca de um caso da doença de Kawasaki a cada três meses. Segundo o hospital, o aumento não pode ser explicado pelo crescimento no número de internações, porque a instituição internou seis vezes menos pacientes pediátricos do que fazia no período pré-pandemia.

Das 10 crianças italianas, oito testaram positivo para anticorpos do Sars-CoV-2. Todos os pacientes descritos no estudo sobreviveram, mas apresentaram quadros mais graves do que os das crianças diagnosticadas nos cinco anos anteriores no hospital com Kawasaki. Além disso, eram mais velhas do que os pacientes em geral acometidos pela doença. Tinham em média 7,5 anos, enquanto a idade dos casos clássicos de Kawasaki gira em torno de 3 anos.

Para o pediatra Lorenzo D’Antiga, coautor do artigo e diretor da Unidade de Transplante Pediátrico do Hospital Papa Giovanni XXIII, as crianças do estudo apresentaram uma forma grave da doença de Kawasaki que tem como gatilho a infecção pelo Sars-CoV-2.

Após a publicação do artigo na Lancet, outros 10 casos da doença foram registrados no hospital. Um novo artigo deverá ser publicado em breve. “Ainda é uma doença rara; calculamos que atinja uma criança em cada mil infectadas pelo vírus”, disse D’Antiga em entrevista a Pesquisa FAPESP.

“Mas antes ocorria um caso para cada 100 mil crianças. É muito importante que os pediatras reconheçam a doença de Kawasaki e tratem os pacientes de maneira adequada, com imunoglobulina, esteroides e aspirina. Se não receberem o tratamento correto, podem morrer.” Há relatos de ao menos três óbitos de pacientes pediátricos com a síndrome nos Estados Unidos e um no Reino Unido.

O pediatra Marco Aurélio Sáfadi, que também é presidente do Departamento Científico de Infectologia da Sociedade Brasileira de Pediatria, diz que o movimento nos setores destinados a crianças e adolescentes nos hospitais brasileiros está relativamente tranquilo. “A nossa experiência -e a de outros países- mostra que a grande maioria das crianças e adolescentes infectados tem boa evolução; há casos graves, mas são poucos e não tivemos nenhum óbito até agora nos dois hospitais que acompanho de perto.”

O enigma infantil

Ainda não se conhece o motivo pelo qual as crianças e adolescentes representam uma fração tão pequena do total de casos e um percentual ainda menor dentro do universo total de evoluções mais graves da doença, na comparação com adultos e idosos. “Há várias teorias, mas nenhuma evidência na literatura que demonstre de maneira categórica o porquê de as crianças serem poupadas das formas mais graves ou de terem risco menor de complicações”, diz Sáfadi.

Uma das hipóteses frequentemente citadas por médicos e cientistas está relacionada aos receptores do vírus nas células humanas. Já se sabe que o Sars-CoV-2 infecta as pessoas via receptor da enzima conversora de angiotensina (ACE2), que pode ser encontrada nos pulmões, no trato gastrointestinal, nos rins, no endotélio e em outros tecidos. “De alguma forma esses receptores não se alinham, não se expressam nas crianças da mesma forma que nos adultos”, afirma o pediatra.

Isso explicaria também por que algumas crianças podem apresentar apenas sintomas gastrointestinais, sem nenhuma manifestação inicial da doença no aparelho respiratório, como descreveu um estudo publicado em maio na Frontiers in Pediatrics, a partir do caso de cinco crianças internadas no Hospital Infantil de Wuhan, na China.

Na capital paulista, médicos e pesquisadores da FCM-SCSP e da USP (Universidade de São Paulo) publicaram o relato de caso de uma garota de 10 anos infectada pelo Sars-CoV-2, sem comorbidades, que apresentou hematúria (sangue na urina) e apenas leves sintomas respiratórios.

“O sangue na urina é encontrado mais frequentemente em adultos que manifestam sintomas graves da covid-19”, conta a pediatra Flávia Jacqueline Almeida, da FCM-SCSP, coautora do relato. “Nesse caso, a menina teve quatro dias de febre e três dias de hematúria, urinando puro sangue. Depois disso, não teve mais nada.”

O caso, para Almeida, também deve servir de alerta para pediatras daqui para a frente. “Quando virem hematúria, é preciso pensar em infecção por covid-19”, afirma. A médica e outros colegas da Santa Casa estão testando crianças que passam pelo pronto-socorro do hospital, com sintomas de resfriado comum e assintomáticas, para estudar a prevalência do vírus da covid-19 nessa população.

Vetores de transmissão?

A quantidade de crianças portadoras do vírus, mas assintomáticas, é também um mistério a ser desvendado. Outra questão em discussão é qual a participação dos mais jovens na transmissão do Sars-CoV-2. O tema ganha relevância principalmente agora que muitos países estão saindo da quarentena ou do lockdown e reabrindo escolas ou avaliando o momento de retomar as aulas.

Segundo um estudo de revisão da University College London, do Reino Unido, divulgado em 24 de maio no repositório de preprints medRxiv que ainda aguarda a revisão por pares para a publicação em uma revista científica, crianças e jovens de até 20 anos têm 56% menos risco de contrair a covid-19.

Os dados foram resultado da análise sistemática de 18 estudos, selecionados a partir de um universo de 6.332 trabalhos. Os autores concluem que os achados sugerem que as crianças exercem um papel menor na transmissão do Sars-CoV-2, porque têm um risco menor de estarem infectadas. A própria UCL, no entanto, afirma que o trabalho não fornece informações sobre a capacidade de transmissão do vírus por crianças infectadas.

Fonte: Viva Bem/UOL