ONU propõe renda básica temporária para frear pandemia de coronavírus

Atualizado em 24/7/2020

Centenas de milhões de pessoas enfrentam diariamente o dilema de se confinar para não contrair o novo coronavírus, freando assim o avanço da pandemia, ou sair para trabalhar e continuar comendo. A maioria —pobres em países pobres, trabalhadores informais que vivem um dia de cada vez e não têm uma rede de apoio se sua renda sumir— opta pelo segundo. Assim, é impossível dobrar a curva de contágios, como se conseguiu nas economias avançadas confinando a população, e o SARS-CoV2 continua sua expansão incontrolável. Essa é a conclusão de um estudo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que propõe que os Governos das nações em desenvolvimento garantam uma renda básica temporária, enquanto a pandemia durar, às pessoas em situação de pobreza ou em sério risco de cair nela. E acabar assim com o dilema entre ter covid-19 e passar fome.

Concretamente, o relatório Renda Básica Temporária: Proteção de Pessoas Pobres e Vulneráveis em Países em Desenvolvimento, publicado nesta quinta-feira, propõe que 132 países de renda baixa e média garantam um pagamento básico por um tempo limitado para quase três bilhões de pessoas, 44% da população global. “Isto não é um apelo por doações, não é uma ajuda do Fundo de Emergência da ONU para as nações mais pobres, e sim uma proposta para que os Governos desses países examinem suas opções para confrontar a pandemia”, esclarece Achim Steiner, administrador do PNUD, em uma entrevista por teleconferência.

A expansão do SARS-CoV2 se acelerou nas últimas semanas, sobretudo nos países em desenvolvimento e nas economias emergentes, onde as taxas de trabalho informal, sem subsídios de desemprego ou outras ajudas públicas, são elevadas. “Necessitamos de soluções incomuns, temos que pensar de forma diferente, porque o maior desafio que enfrentamos neste momento é que, na ausência de tratamento e de vacinas, esta pandemia continuará se propagando”, comenta Steiner. “O problema é que, ao tratar de contê-la, provocamos um impacto no sustento econômico e social das pessoas. E claramente, e de forma particular nos países em desenvolvimento, onde não há uma rede de segurança social, onde entre 70% e 80% das pessoas ganham a vida através do setor informal, um confinamento significa não ter renda. Um apoio básico temporário é uma opção legítima a considerar nas estratégias nacionais”, detalha.

“As previsões feitas há dois ou três meses sobre a pobreza e a perda de empregos e renda estão começando a se cumprir agora”, advertiu o economista George Gray Molina, chefe de política estratégica do PNUD, durante um encontro virtual com jornalistas. Segundo seus cálculos, entre 70 e 100 milhões de pessoas poderiam cair na miséria extrema (viver com menos de 1,90 dólar por dia —cerca de 10 reais) devido à crise econômica desencadeada pela covid-19. Essa previsão já é um problema real. Por isso, Gray urge que sua proposta seja ouvida e adotada o quanto antes. Não há tempo a perder. “Chegamos a mais de 14,5 milhões de casos nesta semana. Foram três meses até alcançar o primeiro milhão, depois aumentou à razão de um milhão por semana, e ultimamente, um milhão a cada quatro ou cinco dias”, alerta.

Perante a dúvida de como economias menos adiantadas poderiam se permitir uma medida como esta, os pesquisadores do PNUD calcularam seu custo e de onde poderia provir. “É factível”, afirma Steiner. “Os países têm diferentes limites de pobreza”, observa Gray. A proposta do PNUD é que se garanta que todos os cidadãos estejam acima desses limites, seja completando seus exíguos ganhos ou transferindo uma quantia fixa, que calcularam em 5,50 dólares (28,16 reais) por dia, que é a linha de pobreza mais comumente adotada.

No primeiro caso —adaptar a ajuda ao limite nacional de pobreza—, se a linha de pobreza estiver em 1,90 dólar por dia, seria preciso garantir uma renda de 3,20 dólares a cada cidadão. Se o limiar for de 3,20 dólares, cada pessoa deveria obter um mínimo de 5,50. E onde se vive na pobreza mesmo ganhando mais de 5,50 dólares por dia, como na maior parte da América Latina e Europa, então seria preciso garantir até 13 dólares por dia. Promover esta medida custaria aproximadamente 200 bilhões de dólares (pouco mais de um trilhão de reais) por mês. A opção de uma ajuda uniforme de 5,50 dólares por dia para 2,78 bilhões de pessoas representaria um investimento de 465 bilhões mensais.

Esses recursos poderiam provir, segundo Gray, de três fontes. “Não propomos impostos adicionais, porque esta é uma medida temporária, que durará seis, nove ou 12 meses, até que se encontre uma vacina ou uma cura. Mas falamos de reutilizar os recursos existentes”, explica. Um deles é a dívida que os países em desenvolvimento pagam a seus credores. O G20 já concordou com uma moratória no pagamento da dívida dos 77 países mais pobres do mundo, mas o secretário-geral da ONU, António Guterres, pediu que essa suspensão seja estendida a todos os países em desenvolvimento, incluídos os de renda média, assim como os pequenos Estados insulares.

Se cumprida, essa suspensão da dívida estendida chegaria a 3,1 trilhões de dólares neste ano, que é o que desembolsariam os países em desenvolvimento a seus credores em 2020, calcula o PNUD. Uma quantidade que cobriria total ou parcialmente —dependendo da opção— até o final do ano a renda básica temporária que o organismo propõe. Outra fonte poderia ser, segundo o organismo, entregar às pessoas os subsídios hoje destinados aos combustíveis fósseis. E, finalmente, sugere uma espécie de sistema de autofinanciamento das ajudas. “A maioria das transferências de dinheiro aos pobres ou vulneráveis vai para o consumo e têm um efeito multiplicador muito forte em nível local. E parte do investimento será recuperada mediante impostos diretos ou indiretos que poderiam por sua vez financiar parte das próprias ajudas”, aponta Gray.

Além do financiamento da medida, há outros desafios, como o administrativo. Como encontrar e fazer os pagamentos a tantas pessoas, muitas delas não registradas e fora do sistema? “Vimos muita inovação com ferramentas digitais nos últimos meses”, diz o especialista. E há a experiência dos países que já implementaram pacotes de ajudas aos mais necessitados. A maioria é de países ricos, mas também há nações em desenvolvimento que iniciaram programas de proteção dos mais vulneráveis, como o Togo. Muitos, entretanto, terão que inventar suas próprias respostas.

“Claramente, estamos em um território desconhecido. Mas podemos tirar partido das melhores práticas de muitos países e tratar de aplicá-las em uma situação excepcional para estabelecer um conjunto extraordinário de medidas para abordar o que de outra maneira derivaria em uma situação intratável em muitos países”, adiciona Steiner. “Estamos em uma situação sem precedentes. Necessitamos respostas sem precedentes. O número de infecções e mortes continua aumentando exponencialmente. O que fizemos até agora não é suficiente.”
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NO BRASIL, GOVERNO BLOQUEIA CONTAS COM SUSPEITA DE FRAUDE

No Brasil, o Governo Jair Bolsonaro firmou parceria com o Ministério Público Federal e a Polícia Federal para coibir e punir fraudes no recebimento do auxílio emergencial, verba destinada à população de baixa renda para reduzir o impacto econômico da pandemia do novo coronavírus. O auxílio de 600 reais foi criado em abril para valer por três meses e, em junho, foi prorrogado por dois meses. Segundo dados publicados pelo Ministério da Cidadania, mais de 1,3 milhão de cadastros de pessoa física (CPFs) estão sob averiguação e parte das contas para o recebimento do benefício foi bloqueada, informa a Agência Brasil. Uma das fraudes detectadas é a criação de contas digitais falsas por hackers para tentar desviar recursos de beneficiários. A pasta liberou nesta quinta-feira o sistema para recadastramento de usuários com inconsistência de dados, e quem está com suspeita de fraude na conta precisará ir pessoalmente até uma agência da Caixa. Desde sua implantação, o auxílio vem apresentando problemas como atraso de pagamento e de aprovação do pedido, gerando aglomerações e filas na frente das agências da Caixa.

Alejandra Agudo

Fonte: El País