Após o confinamento, surge o medo de retomar a rotina

Atualizado em 15/8/2020

Enquanto as cidades se planejam para uma reabertura gradual de suas atividades, tentando conciliar a retomada da economia com a segurança da população, parte das pessoas que têm vivido meses confinadas em casa se vê agora invadida pelo temor de voltar ao convívio social. Tomadas por uma sensação de vulnerabilidade, para elas o novo normal não é só um conjunto de medidas de prevenção, mas uma realidade cheia de ameaças e, consequentemente, uma grande preocupação sobre como seguir em frente com suas vidas.

“Sou professora e tenho muito receio porque também sou asmática e muitos jovens são assintomáticos. Vivo duas realidades diferentes. Tem o curso em que trabalho no Centro do Rio, que aderiu ao EAD em definitivo e já até entregou as salas, uma vez que muitos dos alunos também passaram a trabalhar em home-office e não fariam mais esse deslocamento até as unidades. Mas também vivo a realidade de professora do ensino municipal. Essa sim me deixa bastante estressada, por conta das incertezas quanto ao retorno, apesar de Maricá ser um município que tem agido com bastante responsabilidade. Mas existe uma pressão, até por parte dos pais, para essa volta. Não sei se a escola pública vai poder arcar com todas as medidas de segurança, além do mais, são cerca de 40 alunos por turma, e uma logística para diminuir isso seria muito difícil. Vários lugares do mundo que retornaram às aulas tiveram que voltar atrás por causa da contaminação. É muito preocupante” , desabafa a professora Gláucia mendes Lixa, de 53 anos.

Se por um lado muita gente não vê a hora de transitar com liberdade, por outro, um parcela se sente cada vez mais coagida a se expor a um realidade que considera perigosa.

“A saída do confinamento está anexada à contínuos informes sobre a expansão do contágio e do número de mortos e constantes informes sobre uma segunda e até mesmo de uma terceira onda. Resumindo, o chamado novo normal está nascendo em meio a uma confusão de expectativas de mudanças e inseguranças coletivas. Toda a vivência determinada pela pandemia é muito estressante, e essa saída é um item a mais na pauta desse estresse”, ressalta o psicólogo Alcindo Miguel Martins Filho.

No contexto atual, o medo da contaminação também se agrega, segundo Miguel, à necessidade de viver em uma realidade profissional e econômica, que entrou em um período de acentuada mudança.

“Nem todas as pessoas se adequam a um uso massivo de insumos cibernéticos, muitas pessoas estão profundamente machucadas pelo confinamento, muitas relações sofreram pesados estremecimentos pela mesma razão, muitos foram economicamente afetados. Esses aspectos desafiadores não são superáveis por decreto, precisam de um ambiente mais tranquilo e seguro que garanta à todos nós um tempo de recomposição, restauração e recuperação”, defende o psicólogo.

O mal estar causado pela retomada das atividades tem até colocado em evidência o termo ‘Síndrome da Cabana’ utilizado desde o início do século passado, com origem nos Estados Unidos, para falar da angústia e receio diante da ideia de sair às ruas após ficar isolado. Criado para explicar um problema que acometia trabalhadores que passavam longos períodos em cabanas, esperando o inverno passar.

Mesmo sem pressão para o retorno presencial ao trabalho, Clarisse Terra, de 63 anos, contrarregra da Unirio, se sente angustiada durante as poucas saídas que tem feito as ruas. Enfrentando a quarentena sozinha com seus pets, e dentro do que é considerado grupo de risco, ela acredita que o cenário fora de casa revela uma imprudência por parte de muitas pessoas com a própria saúde e com a da população em geral.

“Sempre fui muito ativa, fiz exercícios, e foi difícil para mim lidar com a quarentena no início. No entanto, percebi que de um mês pra cá eu tenho apreciado bastante ficar em casa. Só saio quando tenho que ir ao banco, faço um roteiro para aproveitar e resolver tudo que preciso na rua, mas mesmo assim sinto um terror com isso. As pessoas sem máscaras não respeitam o isolamento e muitas vezes ficam aglomeradas. Isso me faz desistir de retomar minhas caminhadas. Me identifico com essa síndrome da cabana, atualmente só me sinto segura em casa. Não quero me inserir nesse contexto que ninguém sabe onde vai dar e não acredito na segurança dessa flexibilização”, ressalta Clarisse.

Profissionais de saúde preferem não generalizar e nem transformar essa expectativa em uma doença, apesar de reconhecerem que a sensação aflige hoje grande parte da população.

“É natural sentir ansiedade. Foi uma mudança brusca, precisou de todo um período para as pessoas se adaptarem ao papel do isolado. A gente sofreu com isso, mas não teve como fugir. Agora a dificuldade é inversa. Como dar conta de fazer as coisas que nos esperam? O medo é natural. Ele nos protege. Quem tenta negar isso acaba sendo negligente com a própria segurança. Afinal, vamos ter que nos reinserir, dar conta, correr atrás do prejuízo. Nossa tendência é sempre se acomodar na segurança. É inevitável sentir isso, mas o que vai nos ajudar nessa hora é não dar apenas um sentido negativo para esse medo, mas sim, entender que ele não é uma doença, mas que faz parte de um processo de transição. Lembrar que com qualquer mudança a gente também pode aprender e crescer”, conclui Jairo Werner, psiquiatra e cientista do CNPq no Continente Antártico, em um estudo voltado a saúde mental no isolamento e confinamento.

Para as empresas que estão planejando a volta ao trabalho, ainda há muitas dúvidas.

“É importante verificar se é possível flexibilizar as jornadas de trabalho, permitindo o trabalhador realizar suas atividades em casa e ir até o escritório somente em alguns dias da semana e evitando que os colaboradores utilizem o transporte público em horários de pico. A higiene pessoal também precisa estar alinhada à higienização do posto de trabalho, equipamentos como mouse, notebook e itens de uso compartilhado. A ventilação deve ser uma prioridade. Não adianta ter um distanciamento considerado adequado se o ar condicionado do escritório não estiver com os filtros limpos e não houver troca de ar, ainda mais porque fica cada vez mais evidente que a covid-19 é transmitida pelo ar’, conclui Alexandre Pierro é sócio-fundador da empresa Palas, especializada em gestão da inovação.

Fonte: O Fluminense