A estratégia defendida por pesquisadores para não fechar comércio em segunda onda de Covid-19

Atualizado em 23/11/2020

No momento em que alguns indicadores sinalizam que o Brasil pode estar no início de uma nova onda de covid-19, a possibilidade de intensificar medidas restritivas e fechar estabelecimentos comerciais novamente preocupa epidemiologistas, economistas, comerciantes e a população.

Mas um estudo publicado neste mês na revista Nature defende que desenvolver estratégias mais direcionadas para cada tipo de estabelecimento, com base em dados dos deslocamentos das pessoas pelas cidades, pode ser mais eficaz do que adotar o fechamento generalizado de comércios.

Desenvolvido por pesquisadores da Universidade de Stanford e da Universidade de Northwest, o estudo coletou dados de mobilidade de 98 milhões de pessoas de 57 mil bairros situados nas dez maiores cidades dos Estados Unidos (Atlanta, Chicago, Dallas, Houston, Los Angeles, Filadélfia, Miami, Nova York, San Francisco e Washington).

Os dados são anônimos, foram registrados entre março e maio de 2020 e disponibilizados gratuitamente pela empresa Safe Graphic para acadêmicos e pesquisadores. Esses dados reúnem informações como: o bairro de origem e o destino do deslocamento, qual foi o tempo médio de permanência no estabelecimento e o número de visitantes por hora que este recebeu.

Em seguida, foi feito um cruzamento entre esses dados e o número de casos da covid-19 em cada cidade, os pesquisadores calcularam os níveis médio de infecção em alguns estabelecimentos fechados e concluíram que alguns lugares têm maior potencial de disseminar o coronavírus. Esse é o caso sobretudo de restaurantes, mas também de cafés, bares, hotéis, academias e templos religiosos.
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Ocupação máxima e timing

Os pesquisadores utilizaram um modelo matemático para simular cenários com diferentes taxas de ocupação máxima desses estabelecimentos – como seria a taxa de contaminação se um restaurante estiver 100% lotado e com 50% das mesas livres, por exemplo.

A conclusão foi que limitar a ocupação a 20% pode reduzir em 80% novas infecções pelo coronavírus nesses lugares. Além de diminuir os riscos de novas infecções, essa limitação não reduz a clientela de forma linear durante todo o período de funcionamento do estabelecimento. De acordo com o estudo, uma taxa de ocupação máxima de 20% provocaria a perda de 42% do total de visitas (e não de 80%).

“Limitar a ocupação só diminui realmente a clientela nos horários de pico. É mais estratégico reduzir as ocupações nesses horários do que fechar os estabelecimentos de modo indiscriminado”, afirma Emma Pierson, PhD em ciências da computação pela Universidade de Stanford e uma das autoras do estudo.

A pesquisadora diz que a principal contribuição dele é mostrar como a mobilidade é um fator decisivo para a disseminação do novo coronavírus. “Medidas preventivas como usar máscaras, lavar as mãos e manter o distanciamento continuam essenciais. Mas é importante pensar essas medidas conjuntamente com a mobilidade, já que ela pode ter impactos dramáticos. O objetivo é fornecer análises mais detalhadas para sustentar decisões políticas mais equânimes e efetivas.”

Os pesquisadores também analisaram a eficácia dessa medida quando ela é aplicada em cada semana do período estudado. E concluíram que o timing (avaliação do momento) é elemento primordial para a eficácia das medidas de limitação da ocupação. “Há dois fatores que realmente importam: quando você começa a fazer essa limitação e com que intensidade”, complementa Pierson.
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Desigualdades socioeconômicas

Os dados de mobilidade também mostraram como desigualdades raciais e socioeconômicas intensificam a disseminação da covid-19 entre populações de cor e mais pobres. Nas cidades estudadas, os bairros com menos brancos apresentaram riscos maiores de infecção.

Outro dado aponta que mercados e mercearias de bairros mais pobres receberam, por hora, um número de visitantes 59% maior do que daqueles situados em regiões mais ricas. E os mais pobres também permaneceram uma média de tempo 17% superior. Tudo isso dobra o risco dessa população ser contaminada pelo coronavírus nesses estabelecimentos, em comparação aos mais ricos.

Os autores do estudo afirmam que essas diferenças são explicadas por alguns fatores. Um deles é que minorias raciais e populações mais pobres têm menos possibilidades de reduzir os seus deslocamentos (por não terem empregos que permitam home office) e menos flexibilidade de horário para ir a esses comércios. Outro é que aqueles situados em bairros mais pobres tendem a ter uma área menor e serem mais lotados.

Os pesquisadores concluem o estudo apontando algumas medidas para reduzir a disseminação da covid-19 em bairros mais vulneráveis. Além de limitar a ocupação máxima, eles sugerem a criação de centros emergenciais de distribuição de alimentos (para reduzir a lotação de mercados e mercearias), a ampliação de testagens gratuitas, suportes governamentais de renda e locais de trabalho adequados (com boa ventilação e distanciamento quando possível). “Este estudo pode oferecer uma visão otimista, já que essas intensidades de deslocamentos podem ser mudadas”, afirma Pierson.

Questionada sobre por que o estudo focou somente em áreas nos arredores das estações de metrô das metrópoles pesquisadas, a pesquisadora afirma que essas áreas abrangem uma população que equivale a quase um terço da população total dos Estados Unidos, o que pode oferecer um bom parâmetro de análise. “Um bom próximo passo seria pesquisar dados de mobilidade de populações das áreas rurais”, conclui.
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Avaliações

Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil consideram que o estudo publicado na Nature traz um quadro amplo sobre as dinâmicas de disseminação do coronavírus. “Os modelos adotados permitem avaliar os impactos das medidas de restrição, acompanhar a dinâmica da pandemia e planejar de forma adequada as medidas restritivas. Ele combina uma base grande de dados de mobilidade e um modelo epidemiológico robusto”, diz Bernardo Lanza, docente do Departamento de Demografia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Para a economista Monica de Bolle, o estudo inova ao trazer análises com mais nuances (fora da lógica “tudo ou nada”): “Ele oferece um meio termo que permite preservar os sistemas de saúde e a saúde das pessoas, sem ter impactos econômicos tão fortes ou restritivos como ocorreu com o lockdown.”

Na avaliação dela, o estudo evidencia que limitar a ocupação máxima é a melhor forma de calibrar as medidas sanitárias que funcionaram até agora.

“É fundamental ver quantas pessoas compartilham um único espaço ao mesmo tempo. Para evitar aglomerações é melhor receber 100 visitas em cinco dias do que em um só. Enquanto não houver vacinas, nenhum país vai poder reabrir os comércios com 100% da lotação”, afirma Bolle, que também é pesquisadora-sênior do Peterson Institute for International Economics (PIIE).

Na opinião de Paulo Lotufo, docente de epidemiologia na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), o estudo trabalha com um volume muito grande de dados, o que deixa algumas informações sem detalhamento.

“Não fica claro se os restaurantes analisados estavam funcionando em locais abertos ou fechados e como era esse funcionamento. Mas isso é fruto da opção dos pesquisadores por um estudo com uma grande amplitude, que permite uma generalização sobre o processo. Para ter um conhecimento mais detalhado, é preciso analisar um volume menor de dados, cidade por cidade.”

Para o médico Márcio Sommer, a limitação máxima não deve ser dada por uma porcentagem, mas, sim, pela relação entre número de pessoas e a metragem quadrada do estabelecimento. Ele também frisa que as chances de contaminação não dependem apenas do tipo de estabelecimento, mas também de como ele se adapta para reduzir os riscos.

“A discussão deixa de ser abrir ou não abrir e passa a ser: como reabrir oferecendo poucos riscos? Não se trata apenas de uma decisão individual, mas de adaptação do projeto dos comércios e de fiscalização pelas autoridades. É uma discussão social. A única forma de controlar essa cadeia de transmissão é fazer intervenções sempre no coletivo: na comunidade, com a comunidade e pela comunidade”, pondera o integrante do Centro de Pesquisa Clínica e Epidemiológica do Hospital Universitário da USP.

Além do grande banco de dados, todos os especialistas entrevistados pela BBC News Brasil consideraram a inserção de fatores socioeconômicos e raciais outro ponto forte do estudo.

“As pessoas não são homogêneas e têm diferentes capacidades de isolamento e distanciamento. Alguns grupos podem precisar circular mais do que outros e frequentar locais de maior risco”, lembra Bernardo Lanza.

“Quando a covid-19 atinge uma pessoa, ela interage não só com as comorbidades, mas também com o contexto socioeconômico em que ela vive. É uma soma de fatores que não dá para separar; em termos de pesquisa e de intervenção de política pública, é fundamental ter esse olhar mais completo”, complementa Monica de Bolle.
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Realidade brasileira

Como as autoridades brasileiras podem utilizar esse estudo para traçar estratégias mais direcionadas contra a covid-19 no país?

Segundo os especialistas ouvidos pela reportagem, o primeiro passo é considerar algumas diferenças entre as realidades dos Estados Unidos e do Brasil. “Existem contextos sociais diferentes entre os mais pobres dos dois países. Nas favelas brasileiras, mais pessoas costumam dividir uma casa, o que reduz o potencial de distanciamento delas”, pondera Sommer.

Lanza lembra que o Brasil tem o InfoGripe, uma base de dados importante organizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). “Ela permite acompanhar de forma adequada a dinâmica da pandemia no nível local e, sendo combinada com informações de outros estudos, nos ajuda a ter um planejamento mais adequado de medidas. O custo da pandemia descontrolada é muito maior do que o de restrições e limitações”, afirma o demógrafo.

Os especialistas também consideram que o país precisa repensar a reabertura de comércios. “Nós nunca saímos da primeira onda. Temos hoje um recrudescimento com transmissão comunitária persistente e estamos perdendo o timing. A boa hora para agir é agora, quando o crescimento de internações hospitalares por covid ainda não está muito grande. Depois que a doença chega, só podemos fazer controle de danos”, avalia Sommer, que também é mestre em saúde pública pela USP.

Para ele, o estudo incentiva a busca por várias estratégias que podem ser aplicadas simultaneamente. “Pequenas e médias empresas não sobrevivem funcionando só com 20% da sua capacidade máxima. É preciso pensar soluções individualizadas e combinadas para cada tipo de estabelecimento: investir em entrega, limitar o fluxo de clientes, ampliar o horário de funcionamento, ocupar mais espaços públicos.”

Os médicos defendem um maior uso de áreas públicas ao ar livre, já que espaços abertos são mais seguros do que os fechados. Nesse contexto, algumas medidas possíveis envolvem uma utilização de ruas, parque e praças.

“A pandemia é uma oportunidade de voltar a fazer, de forma controlada e com um fluxo menor de pessoas, atividades que nos acostumamos a fazer em lugares fechados. A gente pode fechar ruas que tenham muitos restaurantes e bares e colocar alguns mesas desses estabelecimentos de forma espaçada nas vias públicas. Isso oferece menos riscos e não diminui tanto o número de clientes”, aponta Sommer.

Essa também é a opinião de Paulo Lotufo: “No Brasil, precisamos melhorar as praças e os parques públicos e torná-los mais atrativos. Muitas vezes, a quantidade de mesas para as pessoas utilizarem é mínima, o que impede um uso maior desses espaços. Não faz sentido reabrir parques depois de shoppings e academias. A gente acabou reabrindo lugares com pouca ventilação e sem muito controle.”

Outro aspecto importante é que o Brasil apresenta maiores desigualdades sociais, o que torna o cenário mais complexo. Para Monica de Bolle, a limitação da capacidade máxima tem uma repercussão considerável no país, onde é grande o contingente de pessoas empregadas nos setores de serviços e comércio.

A economista não acredita que haverá o mesmo nível de aumento do desemprego visto no começo da pandemia no país, mas considera muito provável parte das pessoas que foram readmitidas no terceiro setor devem perder a renda novamente, qualquer que seja a porcentagem de limitação.

“A abertura ilimitada também foi feita na Europa. Ela acreditou que podia reabrir tudo sem maiores restrições, e nisso surgiu o espaço para o coronavírus se reinstalar. Mas no Brasil há muito mais gente vulnerável e pobre, o que faz tudo mais exacerbado. Daí a importância de medidas como o auxílio emergencial.”

Para ela, este quadro torna o planejamento de estratégias ainda mais necessário. “O estudo mostra que existe uma sintonia fina que pode ser feita. Mas isso tem um timing,e as autoridades precisam ajustar essa sintonia às circunstâncias de cada região. Vai haver segunda onda no Brasil, e é preciso agir antes do vírus”, diz a pesquisadora, que também é diretora do Programa de Estudos Latino Americanos da Universidade Johns Hopkins.
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Fonte: BBC News Brasil