Quer reduzir os riscos de Covid-19? Comece a dormir mais

Atualizado em 20/10/2020

Dormir é uma maneira simples de fortalecer nosso sistema imunológico para prevenir resfriados, gripes e outras infecções respiratórias.

Constatações sobre o sono e seus benefícios para a saúde já são conhecidos há pelo menos dois mil anos.

A obra de Aristóteles Do Sono e da Vigília, de 350 a.C., apresentou a ideia de que a digestão no estômago produz vapores quentes que provocam sono e que as pessoas com febre sentem algo semelhante, o que as faz cochilar para ajudar no processo de cura.

Embora a ideia dos vapores quentes não tenha feito sucesso, décadas de evidências científicas mostram que o sono é uma maneira eficaz de fortalecer o sistema imunológico contra resfriados, gripes e infecções respiratórias. O texto sugere que o sono pode ser uma forma poderosa de combater a pandemia — não apenas por reduzir a probabilidade ou gravidade das infecções. O sono pode aumentar a eficácia das vacinas contra covid-19 quando elas estiverem disponíveis e diversos estudos estão sendo realizados para analisar os benefícios à saúde proporcionados pelo sono, que podem nos ajudar a combater o coronavírus.

“Temos muitas evidências de que, dormindo o necessário, certamente podemos ajudar o nosso organismo a combater qualquer tipo de infecção”, diz Monika Haack, psiconeuroimunologista da Escola de Medicina de Harvard (HMS), na cidade de Boston. “Quantas mortes podem ser evitadas se as pessoas dormirem bem ou como podemos reduzir a gravidade dos sintomas? São assuntos que precisam de mais pesquisas”.

Enquanto não houver vacina disponível, o segredo é reduzir o risco de infecções o máximo possível para se prevenir contra a covid-19. Com o surgimento de novas informações sobre o sono e a covid-19, a expectativa dos cientistas é obter mais esclarecimentos sobre a complexidade do nosso sistema imunológico, ao mesmo tempo em que definem diretrizes mais claras sobre como utilizar o sono como aliado no combate à pandemia.
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A relação entre sono e infecções

Nós não somos os únicos seres que se beneficiam do sono. Estudos sinistros do fim do século 19 mostraram que quando cães e ratos são privados completamente de sono, podem morrer em poucas semanas. Para as pessoas, a privação de sono extrema também tem consequências a longo prazo, podendo aumentar os riscos de diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares, demência e depressão. Algumas dessas condições crônicas estão entre os fatores de risco que aumentam a vulnerabilidade à covid-19.

Quando estamos cansados, também ficamos mais suscetíveis a riscos, afirma o tenente-coronel Vincent Capaldi, chefe do Departamento de Biologia Comportamental do Centro de Pesquisa em Psiquiatria Militar e Neurociência do Instituto Militar Walter Reed, em Silver Spring, Maryland. Dormir pouco é algo muito comum para soldados, e Walter Reed dedica um centro de pesquisa inteiro para entender os impactos de ficar acordado por muito tempo na nossa capacidade de pensar e no funcionamento do nosso organismo.

“Nos expomos a um risco maior de cometer erros quando precisamos nos proteger, mas estamos com sono”, explica o coronel Capaldi. Em geral, o cansaço pode nos deixar desatentos ou nos fazer esquecer de usar máscara, adicionando mais um fator de estresse ao nosso sistema imunológico.

Evidências concretas também mostram que a privação de sono prejudica a capacidade de combatermos uma doença após a infecção ter se instalado. Em diversos estudos, pessoas com distúrbios do sono, pessoas que dormem menos de cinco ou seis horas por noite e pessoas com níveis baixos de eficiência do sono (a porcentagem de tempo gasto dormindo durante a noite) apresentam taxas mais altas de doenças respiratórias, resfriados e doenças relacionadas.

Dormir mais de 10 horas por noite tem sido associado a taxas mais altas de doenças, mas os especialistas dizem que dormir mais provavelmente não faz as pessoas adoecerem. Contudo, outros problemas de saúde, incluindo a depressão, podem causar sono excessivo. Doenças como diabetes ou apneia do sono podem causar sono de baixa qualidade, gerando noites mais longas com menos sono em geral.

Alguns estudos investigaram a relação direta entre sono e doenças, em vez de simplesmente analisar se o sono tem relação com infecções. Pesquisadores da Universidade da Califórnia (UCSF), em São Francisco, e da Universidade Carnegie Mellon, em Pittsburgh, recrutaram 164 adultos saudáveis para utilizar dispositivos rastreadores do tipo Fitbit específicos para pesquisa e monitoraram seus hábitos de sono por uma semana. Em seguida, levaram os participantes do estudo ao laboratório, onde os pesquisadores injetaram gotas de rinovírus (resfriado comum) em seu nariz antes de colocá-los em quarentena em um hotel por cinco dias.

O vírus tinha a mesma probabilidade de invadir o organismo das pessoas e se replicar, independentemente de quanto tempo tenham dormido, constatou a equipe, em 2015. Mas aqueles que dormiam menos de seis horas tinham 4,5 vezes mais chances de desenvolver sintomas de resfriado, em comparação com pessoas que dormiam mais de sete horas por noite. Os rinovírus são bons corolários para os coronavírus. Tudo indica que as respostas imunológicas a ambos são semelhantes, explica o coautor do estudo, Aric Prather, psiconeuroimunologista da UCSF.

O sono e suas consequências para a nossa saúde também estão associados aos tipos de desigualdades sociais que a pandemia revelou. Em um outro estudo, publicado em 2017, Prather e colegas reuniram dados sobre 732 pessoas de três estudos sobre rinovírus e encontraram uma relação semelhante, com uma diferença.

Somente as pessoas que se classificaram em status socioeconômicos mais baixos (com base nas informações sobre renda, educação e trabalho) apresentavam uma probabilidade maior de contrair resfriados após dormirem pouco. Essas disparidades também refletem nas taxas de infecção do vírus SARS-CoV-2. Parte do problema é que nem todo mundo consegue dormir o suficiente, pois as pessoas nas faixas de renda mais baixas costumam ter vários empregos ou trabalhar à noite.

“É realmente uma questão de justiça social quando falamos da possibilidade de as pessoas dormirem o quanto precisam”, lamenta Prather. “Todos esses fatores geram distúrbios do sono e geram disparidades nas consequências, o que provavelmente ocorre com a covid-19 também”.
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O sono e o sistema imunológico

Estudos que manipulam o sono — seja fazendo as pessoas não dormir ou aumentando a quantidade de horas que dormem — estão começando a explicar a existência de uma relação tão complexa entre o sono e o sistema imunológico.

“Sabemos que é necessário dormir para combater infecções”, comenta Haack, de Harvard. “Mas para entender de que forma isso ocorre, ainda há muito a ser estudado”.

Em um estudo de 2019, Haack e alguns colegas relataram mais de 35 maneiras pelas quais diversos agentes do sistema imunológico se alteram dependendo das mudanças do sono. Os linfócitos T, por exemplo, fazem parte do sistema imunológico e costumam ser descritos como soldados que combatem infecções. Quando dormimos, de acordo com estudos de pesquisadores alemães, os linfócitos T costumam sair da corrente sanguínea em direção aos nódulos linfáticos, onde atuam contra patógenos invasores, disse Haack. Mas apenas uma noite de privação de sono é o suficiente para manter os linfócitos T circulando no sangue, o que os torna menos capazes de identificar e atacar vírus invasores, segundo os estudos. Quando nosso organismo não descansa, os linfócitos T também se tornam menos capazes de interagir com as células infectadas por vírus, o que reduz seu poder de combater infecções.

As citocinas, uma categoria de moléculas inflamatórias relacionadas à pandemia de covid-19, também são um importante foco de pesquisa sobre sono e imunidade. Citocinas pró-inflamatórias normalmente ajudam a preparar uma resposta imunológica a infecções, levando outras células a atuar, acrescenta Sheldon Cohen, psiconeuroimunologista da Universidade Carnegie Mellon. Mas quando essas moléculas são produzidas em grande quantidade pode ocorrer a tempestade de citocinas, uma reação exagerada associada a casos graves e fatais de covid-19. Em pesquisas sobre resfriados e gripe, pessoas infectadas que haviam dormido pouco apresentaram sintomas mais graves, provavelmente porque níveis elevados de citocinas pró-inflamatórias interferem no funcionamento de linfócitos T e outras células do sistema imunológico.

As citocinas não trabalham por conta própria, mas fazem parte da criação de um equilíbrio no sistema imunológico entre os fatores que promovem e neutralizam inflamações. Ainda estão em andamento estudos que podem estabelecer a influência desse processo em doenças como a covid-19.
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Sono, vacinas e covid-19

Por questões éticas, as pesquisas não podem expor os humanos à maioria das doenças, incluindo a covid-19, o que levou os pesquisadores de vacinas a pensarem em outra maneira de estudar as conexões entre o sono e o sistema imunológico. Até agora, o trabalho relata um caso convincente de que o sono de fato fortalece o sistema imunológico. Isso se aplica ainda mais aos anticorpos, que geralmente são proteínas de longa duração produzidas pelo nosso organismo em resposta a patógenos (e vacinas). Os anticorpos ajudam nosso organismo a se lembrar dessas infecções.

Em um dos primeiros estudos, de 2002, um grupo de pessoas dormiu cerca de oito horas durante quatro noites antes de tomar a vacina contra a gripe e, em seguida, dormiu as mesmas oito horas nas duas noites após a vacina. Dez dias depois, os pesquisadores observaram que os níveis de anticorpos contra gripe dos participantes eram mais que o dobro em comparação com as pessoas do outro grupo, que dormiu apenas quatro horas por noite no mesmo período. A privação de sono também pode reduzir as respostas dos anticorpos às vacinas contra a hepatite A, hepatite B e H1N1. Alguns estudos indicam que basta uma noite para que isso aconteça.

Essas vantagens de anticorpos geram resultados mensuráveis em nossa saúde, mesmo a longo prazo. Um estudo observou que dormir melhor antes de ser vacinado contra a hepatite B levava a uma probabilidade menor de contrair a doença nos seis meses seguintes.

Dado o interesse crescente em desenvolver uma vacina contra covid-19 para acabar com a pandemia em curso, seria boa notifica o fato de um hábito simples ser capaz de tornar as imunizações mais eficazes. Na Walter Reed, os pesquisadores estão desenvolvendo uma vacina contra covid-19, e quando a fase um de ensaio clínico iniciar nos próximos meses, eles planejam que um grupo de participantes durma até 10 horas por noite durante várias noites antes de receber a vacina, segundo Coronel Capaldi. Se dormir nos permite oferecer ao nosso organismo uma melhor resposta à vacina em comparação com pessoas que sofrem de privação crônica de sono, pesquisas futuras podem avaliar se dormir mais horas com a ajuda de medicamentos consegue nos proporcionar os mesmos benefícios.

Compreender a relação do sono também pode ser útil na distribuição da vacina para os profissionais de saúde atuando na linha de frente, especialmente para aqueles que têm trabalhado 80 horas por semana durante a pandemia. É possível que precisem descansar antes de tomar a vacina para aumentar a eficácia de uma dose única. “Essa informação poderia ser extremamente relevante para as diretrizes de vacinação”, conclui Prather. “Tudo que pudermos fazer para tentar melhorar uma resposta ao vírus será de extrema importância”.

Agora, pesquisadores da Walter Reed, da UCSF e de outras instituições estão analisando milhares de dados para estabelecer a conexão entre o sono e o risco de contrair covid-19. Nada foi publicado até o momento, mas Haack afirma ter revisado diversos estudos futuros sobre o assunto, e os resultados parecem promissores.

O sono está longe de ser o único fator que afeta nossa vulnerabilidade a doenças, relembra Cohen, da Universidade Carnegie Melon. Praticar atividade física, contar com a ajuda de outras pessoas, considerar níveis de estresse, tabagismo, consumo de álcool e outros fatores também explicam por que apenas um grupo de pessoas adoece quando é exposto a qualquer vírus, de acordo com uma análise publicada por Cohen em 2020.

Ainda assim, especialistas aconselham a todos que puderem priorizar as horas de sono, dada sua influência nos riscos de infecção. Manter uma rotina de sono consistente é uma forma eficaz de dormir melhor, relembra Prather, além de relaxar antes de dormir diminuindo as luzes, desligando as telas e ficando um tempo sem ouvir as notícias. Cohen recomenda que as pessoas durmam pelo menos sete horas por noite para aumentar suas chances de se manter saudáveis durante a pandemia de covid-19.

“Estamos sempre constatando que as pessoas que dormem pouco possuem maior probabilidade de adoecer quando são expostas a um vírus”, ele reitera. “O sono sem dúvidas desempenha um papel na nossa saúde e bem-estar”.
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Fonte: National Geographic