Moradores do Rio e de SP sem renda sobrevivem de doação de ‘quentinhas’ durante pandemia

Atualizado em 17/8/2020

Centenas de pessoas se põem em fila todos os dias diante de uma tenda no Largo São Francisco, centro de SP. A linha de gente dobra a esquina e se espicha pela avenida Brigadeiro Luiz Antônio. A mesma cena é vista diariamente no miolo da favela do Jacarezinho, zona norte do Rio, a apenas 20 km da Praia de Copacabana.

Todos estão ali pelo mesmo motivo: um prato de comida.

Cada vez mais longas durante a pandemia do coronavírus, as chamadas “filas da fome” expõem nas duas maiores cidades do país um problema que nunca deixou de existir. Relatório da ONG Oxfam classificou o Brasil como o “epicentro emergente” da fome extrema em razão do aumento da pobreza agravada pela pandemia.

Para se alimentar, milhares de pessoas sem renda dependem de refeições distribuídas por ONGs, poder público e grupos religiosos. Muitos relataram ao UOL o temor de que, com a flexibilização da quarentena, essas ações cheguem ao fim.

“O coronavírus é um grande problema para muitas pessoas, mas para mim é a solução para não passar fome” – Vera Arlindo, 64, moradora do Jacarezinho

Para o padre Júlio Lancelotti, da Pastoral do Povo da Rua, o fim do estado de calamidade em São Paulo, estendido até 30 de setembro, pode ser a “inauguração da calamidade”. Isso porque os serviços municipais e estaduais criados no período correm o risco de serem extintos.

“Uma das possibilidades para que a covid-19 não tenha tido letalidade maior entre a população de rua foi a manutenção da alimentação por meio de todos esses esforços”, diz, citando também a mobilização de voluntários.

O UOL acompanhou distribuições de refeições no Rio e em São Paulo e relata a seguir histórias de moradores de rua, trabalhadores informais que viram sua renda desaparecer e de quem perdeu o emprego antes e durante a pandemia.
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No Rio, a quentinha de hoje garante o almoço de amanhã

Mais de 250 pessoas reúnem-se todos os dias à tarde na chamada “fila da fome” que se forma três horas antes da distribuição de “quentinhas” na sede da ONG Rio de Paz na Favela do Jacarezinho.

Paradoxalmente, a pandemia também se traduziu em comida na mesa nessa comunidade, que tem o 6º menor IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) da capital. Antes, até o arroz com feijão era incerto. Agora, ao menos uma refeição completa é feita diariamente.

As famílias que têm geladeira guardam metade das quentinhas para o almoço do dia seguinte. Sem acesso ao auxílio emergencial, catadores idosos estão entre os mais afetados.

Para continuar, o projeto precisa de doações. Interessados em colaborar podem procurar a ONG Rio de Paz por meio de suas redes sociais.

“Antes da pandemia já estava muito difícil arranjar bico. Passei a catar garrafas e latinhas para conseguir comprar comida. Mas, com esse coronavírus aí, não tem como catar mais nada. Então, se eu não pegar a quentinha, fico com fome.  Tenho que comer tudo de uma vez. Não posso guardar uma parte para o dia seguinte porque não tenho geladeira. Desde que a pandemia começou, eu janto de segunda a sexta, cinco dias por semana. Antes não era assim. Aos sábados e domingos, distribuem sanduíches. E, para almoçar, duas vezes por semana dão sopa numa igreja. Antes do coronavírus não tinha nada disso.” – Vera Lúcia Arlindo, 64, catadora e costureira desempregada

“Eu não jantava quase nunca. Na hora do almoço, para não ficar com fome, eu catava os restos de frutas lá do Cadeg [Mercado Municipal do Rio de Janeiro]. Agora não. Tá bem melhor. Tô na ‘fila da fome’ sempre, não falto nenhum dia. Espero que nunca deixem de distribuir comida aqui. Me sinto até melhor jantando. Se acabar, vai me prejudicar muito. Muitas pessoas acham que o maior problema de morar na rua é a falta de teto, mas arranjar comida não é fácil. A gente acorda com fome e pede a Deus para arranjarmos algo.” – Carlos Augusto da Silva, 54, morador de rua

“Meu neto ficou desempregado na pandemia e não está conseguindo fazer nada que renda dinheiro. Temos que sobreviver os dois da minha aposentadoria. Comer e beber um mês inteiro com um salário mínimo é muito difícil. Para mim, impossível. A quentinha é a nossa salvação A comida vem fresquinha e em grande quantidade. Divido com meu neto. Só não venho buscar comida se estiver chovendo ou fazendo muito frio. Com a minha idade, minha saúde já não permite mais extravagâncias.” – Luci Firmino da Silva, 86, aposentada

“Estamos desde o verão sem trabalhar. O nosso Bolsa Família é usado para pagar o aluguel, de R$ 400. Como a gente trabalhava com aluguel de barraca na praia, fomos bem afetados com a pandemia. Mesmo que tenha um solzinho, nosso trabalho não está permitido. Meu marido até faz uns bicos de pedreiro, mas também não está conseguindo nada na pandemia.” – Milena Barreto Fagundes, 23, trabalhadora informal em praia
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Em SP, fila une novatos e veteranos das ruas

Entre almoço e jantar, o Sefras (Serviço Franciscano de Solidariedade) serve diariamente 3.000 refeições em uma tenda no Largo São Francisco.

A fila reúne novatos como Vítor dos Reis, 25, que perdeu o emprego e a casa no começo da pandemia, e veteranos, caso de Aparecido Almeida, 57, há 20 anos morando nas ruas de São Paulo.

Segundo Censo de População de Rua, mais de 24,3 mil pessoas moravam nas ruas da capital em 2019. Entidades relatam contudo que, com a pandemia, esse número cresceu. E mesmo quem tem um teto, como Maria Bueno, 68, passou a recorrer à distribuição de refeições na região central.

Durante a pandemia, o governo estadual ampliou em 60% as refeições mensais nos restaurantes populares Bom Prato, com café a R$ 0,50 e almoço e jantar a R$ 1. Moradores de rua cadastrados recebem marmitas de graça.

A prefeitura criou vagas emergenciais em albergues, dois pontos com distribuição de refeições e instalou 11 pias e sete banheiros para a população de rua no centro.

“Há legados que podem ser adotados permanentemente mesmo após a pandemia, pois um rastro de problemas ainda continuará” – Rildo Marques de Oliveira, da Comissão de Direitos Humanos da OAB

Para o advogado, que é coordenador do Núcleo de População de Rua e Movimentos Sociais, os banheiros com banho devem ser mantidos e a capital poderia estudar um programa de renda básica.

O Sefras diz que manterá a distribuição de refeições mesmo após o fim do decreto estadual de calamidade pública, estendido até 30 de setembro.

“Serão precisos planos para enfrentar as consequências [da pandemia]. Fomos para a praça para atender a uma demanda, mas a realidade em que estamos envolvidos não está superada. A alimentação será muito importante no pós-pandemia” – Frei José Francisco, diretor-presidente do Sefras

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Fonte: UOL