Idoso, velho ou grupo de risco? A pandemia depois dos 60

Atualizado em 9/9/2020

O ator Antonio Pitanga não vê a hora de voltar a jogar futebol com seus amigos – a turma de Chico Buarque. A professora aposentada Diva Guimarães sente falta do cinema, que não sabe quando vai retornar. Lidia Aratangy, psicóloga e terapeuta de casais, conta os dias para poder reunir a família, como sempre gostou de fazer. Uma coisa eles têm em comum: aos 80 anos, em meio à pandemia, precisam lidar com o excesso de cuidado dos filhos, um novo olhar sobre a esperança (ou a falta dela), as descobertas da tecnologia e o rótulo de grupo de risco. Um pouco mais novos – 67 anos –, a psicopedagoga Maria Eugenia Obniski e o psicoterapeuta Roberto Azevedo Junior também contam, a seguir, o que aprenderam e o que estão sentindo.
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Antonio Pitanga
Ator, 81 anos. Mora no Rio de Janeiro com a mulher, o filho do primeiro casamento e as duas netas

“Como a dona Canô dizia, ‘quem não morre envelhece’, e eu estou fazendo isso muito bem. A maturação vem da maneira de viver de cada um. Não tenho o estado de depressão, de neurose. Quando o confinamento veio, continuei cuidando de mim, como sempre fiz. Tenho feito meus exercícios com peso em casa e dado uma caminhada pelas ruas do bairro, o que me faz bem porque preciso ver gente, mesmo que de longe. Sinto muita falta do futebol com os amigos, a turma do Chico [Buarque], mas estamos conversando sobre como voltar, provavelmente com menos jogadores.

Também estou lendo e tocando projetos, para alimentar a mente. Faço lives, reuniões sobre o filme Malês, que vou dirigir depois disso tudo, e debates sobre questões como racismo e inclusão, tudo no computador. Esses eventos on-line, essas ferramentas de WhatsApp, tablet… Era um mundo que nem eu nem minha mulher, [a deputada federal] Benedita da Silva, sabia o que era. Claro que contamos com a ajuda das minhas netas, filhas do Rocco, que moram com a gente. Tem dia que a Benedita está fazendo uma live no cantinho dela e, eu, no meu, que é a cozinha.

A comida é outro ponto importante na minha vida. Sempre me alimentei bem. Quem cozinha é uma pessoa que vem aqui dia sim, dia não, e, no fim de semana, é a Benedita. Eu faço compras no hortifruti e outras tarefas, como limpar umas coisas. A gente se divide bem, tem respeito. Eu não estou odiando estar com ela 24 horas por dia, nem ela está odiando estar comigo. É uma relação muito boa, de amor, de gostar.

O que me entristece é ver que o funcionário número um do país, o presidente, não tem uma consciência entre o mal e o bem ou a sensibilidade do amor ao próximo. Mas isso não me enfraquece. Cheguei aos 81 anos e sei que, enquanto eu tiver força, gana, vida, minha matéria vai estar inteira. Já passei por ditadura, fiquei exilado por dois anos na África, e ver o que está acontecendo, que ele está enganando o povo, é ver o país andando para trás. Imagina se esse cara tivesse uma consciência política militar do bem? Teria convocado a nação para fazer o lockdown e já teríamos saído disso. Fecha tudo, ninguém sem máscara. Mas ele fez tudo ao contrário. Ah, tem também as disputas do presidente brigando com governadores e prefeitos, como crianças discutindo quem viu primeiro. Você está lidando com vidas! Aí as crianças e os jovens vão ter aula on-line, mas quantos têm computador? Se o Kafka vivesse no Brasil, ele iria bater cabeça.

A questão é que tristeza bate, mas não derruba. Eu sou o arvoredo em que pode ventar todos os ventos do mundo porque as raízes aqui foram muito bem plantadas.”
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Diva Guimarães
Professora aposentada, 80 anos. Está em casa desde meados de fevereiro, após uma crise de asma. Uma sobrinha mora com ela

“Não estou passando apenas por uma pandemia. Além da do novo coronavírus, enfrento a que acontece com os negros nesse país. Você já imaginou como ficam essas mães, sem saber se seus filhos vão voltar vivos para casa? Eu não sou mãe, mas tenho sobrinhos e todo santo dia sinto medo de receber uma notícia ruim. Fui a primeira pessoa da família a estudar, dediquei minha vida para que eles tivessem possibilidade de estudo, de trabalho, mas não tenho sossego. É difícil acreditar que essa pandemia vai passar. Sobre o vírus, é outra questão. Ele é diferente para quem tem dinheiro para pagar por um hospital, que não é o pessoal pobre da periferia, o negro, nem o indígena, né?

É muito triste. Eu queria ter um final de vida tranquilo, mas, desculpa, não acredito em nada mais. Mantive a esperança por muitos anos porque fui uma batalhadora. Nem sei como sobrevivi. Trabalhei muito na ditadura, participei de tudo. Hoje, embora eu não tenha mais esperança, gostaria de estar ativa nos movimentos, mas tenho que ficar em casa. É o meu jeito de colaborar, não ser uma transmissora.

Estou isolada desde meados de fevereiro, quando tive uma crise de asma e o médico me mandou ficar em casa. Pensei que uns dias depois eu estaria melhor e poderia sair, mas, aí, veio esse confinamento obrigatório. Eu penso assim: quem pode, como eu, tem que ficar em casa. Sei de muitas pessoas que moram na favela, onde a situação é mais complicada e, mesmo assim, estão tentando se resguardar. Agora, ver gente indo a shopping, festa… Vou usar uma palavra que não devia, mas isso me deixa irada.

Recentemente, faleceu uma amiga da minha família, e o povo continua achando isso normal, sabe? ‘Ah, não, é uma gripezinha.’ Minha sobrinha, que está morando comigo agora, me contou sobre uma senhora que não acredita no vírus porque Jesus vai protegê-la… Esse é o Jesus do Messias [o presidente Jair Messias Bolsonaro], e aí ela sai sem máscara.

Isso mexe tanto comigo que nem ler eu estava conseguindo. A leitura foi o que me ajudou durante a vida, mas, ultimamente, eu começava um livro e parava; estava enfraquecida mentalmente. Mas estou voltando, porque, se não tomar cuidado – e eu não quero que isso aconteça comigo –, a gente perde a capacidade de pensar.

Depois, quando puder, tem duas coisas que não vejo a hora de fazer. Uma delas é ir ao cinema. É algo que antes da pandemia eu fazia pelo menos uma vez por semana com uma amiga. Íamos à sessão do meio-dia. Não vejo a hora de poder voltar. Outra é conversar com crianças e jovens. Participar de conversas em escolas foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida. Até porque, embora eu falei que não acredito em mais nada, eu tenho esperança. A esperança que eu tenho é que essa criançada vai mudar esse cenário de ignorância que a gente vive. Talvez eu não consiga ver isso, mas, pelo o que tenho conversado, acho que pode mudar.”
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Lidia Aratangy
Psicóloga e terapeuta de casais, 80 anos. Mora em São Paulo, mas está passando a quarentena em um sítio no interior paulista, com o marido

“Nunca tinha feito atendimento on-line. Não só não trabalhava dessa maneira como achava um sacrilégio. Mas a gente tem que mudar as referências. Aprendi a atender por Skype, WhatsApp, FaceTime… Depende de qual aplicativo pega melhor onde está o freguês. É a mesma coisa? Não. Eu não não vejo o paciente me olhando nos olhos, e isso faz diferença, mas, se você ficar rígido naquilo de sempre, enlouquece. E estamos em um momento delicado, em que essa situação de contingência louca que a gente está vivendo tende a agravar os sentimentos. As coisas doem mais mesmo. Na hora em que você se machuca, não pode correr para o colo da amiga, que é o que a gente faz normalmente.

Mas eu não posso reclamar porque tenho uma situação privilegiada. Tinha vindo passar o fim de semana com meu marido no sítio, no interior de São Paulo, quando a quarentena foi decretada. Resolvemos ficar aqui, onde estamos em um ambiente muito mais agradável do que na nossa casa, na capital. Ainda por cima, não precisei parar de trabalhar, o que também é um privilégio. Outro é contar com a companhia do meu marido, algo raro em um casamento com a idade do nosso, de 58 anos. Temos muitas afinidades. Assistir ao noticiário político ou a um filme, por exemplo, é algo bom para nós, porque fazemos uma troca bastante harmoniosa. Até o meu balé continuo fazendo. Inicialmente, tentei sozinha, mas não tive disciplina. Aí meus filhos me deram a ideia e estou fazendo aulas com a minha professora pelo Skype.

Então, é quase como se eu estivesse pedindo desculpa para poder me queixar agora, porque meus quatro filhos e dez netos fazem muita falta. É bastante gente para eu sentir saudade. Não é só a falta, é a preocupação, porque não sei como cada um está exatamente. Tem a falta dos amigos também. Toda segunda-feira eu jantava com minha amiga, é uma tradição de décadas. A gente tem se falado bastante pelo telefone, mas não é a mesma coisa, não tem o abraço. Mas acho que logo, logo, a gente volta a se abraçar. Isso vai acabar e todos estaremos testados e limpinhos e vamos poder voltar a se abraçar.

Tem uma coisa que não sei se volta. Acabei de fazer 80 anos e não sei se vou voltar a atender como antes. Talvez as pessoas não estão percebendo, mas a imagem do idoso está sendo muito distorcida. Sempre teve um pouco essa tendência: nos cartazes de preferência para o mais velho, colocam aquela figura de bengalinha, corcundinha, que dá uma pena. Isso não me representa. Mas é algo que já existia e, agora, então, os idosos são uns incompetentes, que não têm autonomia, sabe? E quem vai querer fazer terapia com uma velhinha de 80 anos, tão idiota?

Dos meus filhos, não estou sentindo isso, mas tenho alguns pacientes se queixando dos excessos de cuidados, como se eles não fossem mais capazes de fazer suas escolhas porque são os que mais estão em risco com o vírus. A gente sabe que velho é, em princípio, teimoso. Mas não é idiota. A preocupação é válida, agora, transformá-la em controle, invasão, não pode.
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Roberto Azevedo Junior
67 anos, psicoterapeuta e triatleta. Mora em São Paulo, com a mulher

“No ano passado, fui campeão do mundo do Ironman no Havaí e iria voltar para lá em outubro. Estava super animado. Ao retornar nessa condição, você é tratado de uma maneira especial. Já tinha feito a inscrição e pago o sinal de uma reserva de hotel, e a prova foi adiada para fevereiro. Vou ter que esperar. Mas estou bem. Moro com a minha mulher, que, apesar de mais jovem – tem 54 anos –, é cardíaca. Como nós dois somos do grupo de risco, temos evitado sair de casa desde o começo da pandemia. Não tenho visto meus filhos, mas a gente conversa bastante por telefone. Eles não me cerceiam por eu ter 67 anos, até porque penso muito que o importante é você ter uma visão do que a idade significa para você. Se eu fosse seguir o padrão, não estaria mais correndo porque poderia ter uma lesão, não pedalaria na estrada porque é perigoso, optaria por uma atividade mais leve… Sei dos riscos das minhas escolhas e, por isso, continuo fazendo o que gosto, sempre me cuidando.

Agora, quando se trata de uma questão cívica, é algo maior. Nos primeiros meses da pandemia, por exemplo, mal saía de casa. Não ia correr na rua para não dar chance para um acidente que me levaria a ocupar um leito de hospital neste momento tão delicado. Só mais recentemente, desde que o governo anunciou algumas liberações, passei a sair para correr uma vez por semana na rua, à noite, sozinho e com todos os cuidados.

Nos outros dias, treino em casa mesmo. Um pouco antes de o isolamento começar no Brasil, comprei um rolo de bicicleta que atua com um dispositivo em que consigo treinar virtualmente em várias partes do mundo. Em épocas de auge, eu chegava a pedalar 26 horas por semana; hoje, faço umas dez. Já no período em casa, comprei uma esteira, porque parar de correr não era uma opção.

Para mim, manter uma atividade é importante não só física como psicologicamente. Ajuda a lidar com os impedimentos que estamos vivendo. Tem gente que se sente bem fazendo outras coisas, como tocar um instrumento; no meu caso, é o esporte. Mas acho importante as pessoas não ficarem se cobrando por não estarem fazendo algo. Já tem tanta coisa que deixa a gente estressado que isso não deve ser mais uma.

Eu mesmo perdi meu pai, que tinha 93 anos, já estava com condições clínicas deficitárias e testou positivo para a Covid-19, e não pude me despedir. Foi uma situação que tive que lidar, algo imposto. Não podia fazer nada, então, trabalhei minha cabeça de um jeito que eu não criasse mais um problema, que seria perder a paz de espírito. Tem coisas que dá para lidar bem nesse momento; outras, são mais difíceis, mas é a vida.

Tento viver o agora, entendendo que o possível é o que tenho à minha frente. Tenho 67 anos, mas não sei se me vejo na palavra ‘idoso’. Não faço discriminação. Sou um ser igual a todos os outros, com características próprias, que algumas não são do idoso. Meço 1,76 metro, peso 67 quilos, tenho uma condição de saúde que muitos jovens não têm. Nesse sentido, não me considero um idoso. E procuro manter minha jovialidade mental, o que o idoso mais precisa, já que o resto envelhece.”
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Maria Eugenia Obniski
Psicopedagoga, 67 anos. Mora em São Paulo e ficou internada dez dias por conta da Covid-19

“No começo da pandemia, me irritei bastante com as minhas filhas, por conta do patrulhamento. Uma delas mora nos Estados Unidos, então, vivia quinze dias antes o que passaríamos aqui. Achei que ela estivesse surtada, mas, depois, percebi que a coisa caminhava para isso. O dia inteiro, ouvia das duas: ‘Já usou o oxímetro?’, ‘Vai medir lá agora!’, ‘Não vai dormir sem medir!’. Mas, no fim, foi isso o que me salvou. Eu, achando que estava apenas cansada, tinha sido infectada pelo vírus.

No total, foram doze dias de hospital. Dez deles na UTI, sem comunicação com o resto do mundo. Você vai do jeitinho que pode ir para o mundo espiritual. Entrei sem nem saber como estava minha mãe, que também tinha tido Covid-19.

Aliás, o relacionamento com ela foi uma das adaptações que tive que fazer. Ela mora em uma casa de repouso e, antes disso tudo, eu ia visitá-la de quatro a cinco vezes por semana. Com a pandemia, passei a ir apenas uma vez.

Mas essa foi só uma das adaptações. Logo que o isolamento começou, eu e meu marido começamos a fazer aulas de pilates on-line. Foi ótimo manter uma atividade física, até porque, nessa idade, se você parar, a natureza só piora. Também não precisei parar minha reabilitação para a fibromialgia, doença crônica que tenho há um tempo. Os grupos dos quais participo enviaram conteúdos como aulas e palestras, o que também foi muito bom.

Fiz vários cursos on-line. Comprei aulas de constelação familiar, educação financeira e aromaterapia. E isso acabou me ajudando porque, como sou formada em pedagogia, entendi a didática usada nesses conteúdos e pude aplicar nos cursos de formação que eu coordeno, de Extra Lessons e Quirofonética. Estou nisso há 20 anos, e essa experiência teve que ser adaptada, porque do jeito que a gente fazia não pode mais. Era ou transformar ou transformar. Precisei de ajuda e continuo sendo totalmente analfabeta em tecnologia, mas consegui. Foi uma superação.

Agora, algo que se transformou, e foi muito ruim – mas melhorou depois –, foi o convívio com as minhas netas. Antes de ser infectada, as vi algumas poucas vezes, de longe. Isso é uma dor muito grande. Era quase pior do que não ver, porque não poder pegar é muito sofrido. Nesse sentido, ter tido o bicho foi um ganho da doença, porque agora, no meu ponto de vista, posso ter contato com elas. Posso com todo mundo, mas passamos a ter uma etiqueta social. Não vou ser a única a sair na rua sem máscara.”
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Fonte: Revista Trip